CAROLINA E JESUS

 

I

 

Catá papel. Catá papel. Catá papel. Catá papel. Catá papel. Catá papel. Catá papel...

 

– Nossa. Que barulho é esse? O que é isso?

 

– Desossá papel. Comê sopa de osso de papel. Dá sopa de osso de papel pras crianças. A fome é amarela. A fome amarela. A fome é professora.

 

– Mas o espírito é mais importante do que o alimento. Nunca se esqueça disso.

 

– Espírito? Milhões de pessoas no mundo, a maioria passa fome. Quem não come não caga. Barriga vazia é tortura.

 

Todo dia. Todo dia. Todo dia. Todo dia. Todo dia. Todo dia. Todo dia...

 

– O que é isso? É um trem?

 

– Metê o pé na lama. Metê o pé na água pra buscá água às quatro e meia da manhã. Lavá roupa no rio. Candidato canalha pedindo voto na porta do barraco. Surra de marido em mulher. Cachaça, muita cachaça.  Muita cachaça, muita merda. Prostituição. Peixeira cortando gente. Polícia, muita polícia. Quanto mais polícia, mais merda. Vizinho jogando merda nos meus filhos. Fome. Tenho três crianças pra alimentá. Filho com fome dói. Filho perguntando se tem mais comida dói. Nunca tem mais. Esse “tem mais comida?” é uma mosca na minha orelha. Tontura de fome é fogo. Tortura.

 

Barriga vazia. Barriga vazia. Barriga vazia. Barriga vazia. Barriga vazia. Barriga vazia. Barriga vazia...

 

– Que barulho é esse? Outro trem?

 

– Catei lixo, catei tudo, menos a felicidade. Quero morrê. Vô me jogá na frente do trem.

 

– Nunca diga isso!

 

– Cadê você? Não me abandone.

 

– Estive, estou e estarei sempre contigo. Quem crê em mim nunca está sozinho. Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai, senão por mim. Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados. Se você estiver em mim e as minhas palavras estiverem em ti, peça o que quiser.

 

– Metê palavra no papel. Ganhá dinheiro com meu livro, com minhas palavras. Saí desse inferno. Dá de comê pras crianças.

 

II

 

– Tudo é possível para quem crê. A fé remove montanhas. O reino de Deus tá dentro de você. E agora você tá no jornal, na revista, na imprensa. Vai vendê muito livro. Parabéns.

 

– Metê palavra no papel. Comê carne de palavra. Dá de comê pras crianças.

 

– Isso!

 

Vendê papel. Vendê papel. Vendê papel. Vendê papel. Vendê papel. Vendê papel. Vendê papel...

 

– Perfeito!

 

– Catá papel. Metê palavra no papel. Vendê papel com palavra. Vendê palavra e papel. Comê carne de palavra.

 

– Milhares de livros vendidos.  Tradução em outros idiomas. Parabéns!

 

– Comprá roupa e sapato bom. Comprá livro bom, não sei dormir sem ler. Comprá casa de tijolo. Adeus, Favela do Canindé. Adeus, quarto de despejo. Adeus, barraco de tábua. Viajá pro Chile e Argentina, Europa e América Latina. Costurá a vida com pedaço de céu, com pedaço de nuvem, com pedaço de estrela. O futuro é azul. Obrigado, Senhor.

 

III

 

– Cadê o jornal? Cadê a revista? Cadê a imprensa? Preciso vendê meu livro! Esqueceram meu livro? Ninguém fala do meu livro! Metê palavra no papel e morrê de fome?

 

Fome é foda. Fome é foda. Fome é foda. Fome é foda. Fome é foda. Fome é foda. Fome é foda...

 

– O que é isso? Que barulho é esse?

 

– De novo não. Me ajuda. A fome é a dinamite do corpo humano.

 

– Estive, estou e estarei sempre contigo. Deus não dá mais do que você pode carregar.

 

– Barraco de favela é cinza. Lixo é cinza. Fruta podre é cinza. Ratazana é cinza. A vida é cinza. O prefeito da favela é o diabo.

 

– Nunca diga esse nome!

 

– Tontura de fome é fogo. É tortura. A fome é amarela. Tá tudo amarelo.

 

– Cuidado! Essa faca! Larga essa faca! Me dá essa faca!

 

Tem gente com fome. Tem gente com fome. Tem gente com fome. Tem gente com fome. Tem gente com fome. Tem gente com fome. Tem gente com fome...

 

– Calma! Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao. Ai.

 

IV

 

Um dia depois jornais noticiaram que uma mulher esfaqueou, matou e comeu partes de um homem não identificado.

 

Familiares e amigos não compareceram para reconhecer o corpo. Peritos não conseguiram identificar a vítima.



Igreja de São Francisco de Assis - Salvador/BA



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