O QUE
DIZIA AQUELE OLHAR?
A palavra andorinha
Freme devagarinho
E some em silêncio...
Freme devagarinho
E some em silêncio...
(Mario Quintana)
Ainda
que cortada para enquadrar a personagem, percebe-se que a foto foi tirada em São
Paulo. Por trás, a terra revirada denuncia o canteiro de obras. A cidade se
constrói e se destrói diariamente. É uma das mais antigas do país, mas não se
preserva. Ser absolutamente moderno é ser aliado dos próprios coveiros –
escreveu Milan Kundera. Mas São Paulo não pode parar, não tem tempo para
reflexões que atrapalhem o tráfego, o comércio e os negócios imobiliários.
Era
primavera. Vencido o dia de trabalho, cheguei em casa numa tarde qualquer. A
surpresa estava na sacada. Um bichinho olhava para mim. Tinha uns 10 centímetro
de tamanho e uns 10 gramas de peso. Peito branco. Bico afilado. Nas costas, o preto
se dividia com o azul metálico.
Era uma
andorinha. Mais precisamente: uma andorinha pequena-de-casa. Quem repara em
pássaros, sabe que as andorinhas não são vistas paradas: cortam o céu caçando
insetos, fazem voos rasantes para beber água. Elas não frequentam o solo, no
máximo a fiação ou os telhados. Mas aquela parou na sacada no meu apartamento.
Por quê?
Busquei
na memória todas as informações que dispunha sobre andorinhas. Lembrei-me dos
versos do Manuel Bandeira e do Mario Quintana, declamá-los para ela? Lembrei
que andorinhas são aves migratórias, que cidades aquela visitante discreta
teria frequentado? Lembrei que andorinhas se alimentam de insetos, onde
conseguiria alguns para ela?
Resolvi
pegar a câmera e fotografar a visitante. Me certifiquei de que o flash não
estava ligado e fiz os registros, com cuidado para não assustá-la. Os seres com
poucos gramas não se sentem à vontade perto de seres com muitos quilos.
Mas não
foi para ser fotografada que a andorinha pousou na sacada do meu apartamento.
Não havia nem passarinho, nem alimento, nem água por ali. Por que ela escolheu
a sacada do meu apartamento?
É
indelicado interrogar as razões de um visitante. Ainda mais quando a visita
rompe a rotina e nos traz alegria. A andorinha talvez tivesse pousado na sacada
do meu apartamento para assistir o pôr do sol comigo. Pôr do sol que contemplo
refletido nas janelas de vidro dos edifícios. Pôr do sol paulistano, mutilado.
Generosidade da parte dela. Para quem pode voar por cima da cidade e enxergar
longe, é uma atitude generosa compartilhar o pôr do sol mutilado que se vê da
sacada do meu apartamento.
Talvez
a visitante precisasse de abrigo. Talvez tivesse sede. Peguei uma caixa de
sapato.Recortei uma porta para a entrada e a saída.Fiz furos para a ventilação.
Forrei o fundo com pano.Coloquei um pequeno recipiente com água fresca. Atravessei
um espeto de madeira para servir de poleiro. Que se abrigasse na caixa, caso
resolvesse passar a noite. Mas, ao me aproximar, ela voou. Na verdade mais caiu
do que voou. Com esforço conseguiu fazer um pouso forçado na copa de uma
árvore.
Uma
andorinha, sozinha, não faz verão. Aquela, com certeza, não chegaria
ao verão. Tinha mais algumas horas, ou, no máximo, mais alguns dias de vida. Fiquei
pensando no que dizia aquele olhar. Não era dor. Não era esperança. Talvez
desespero. Desespero entendido como a serenidade dos que não esperam
absolutamente nada.
Ofereci
abrigo e água fresca. Ela partiu como pôde. Melhor seria ter colocado um disco
do Pixinguinha para tocar. Melhor seria contemplar o pôr do sol com a
visitante. Ouvindo chorinho. Sem esperança e sem desespero.
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