SÃO PAULO: A CAPITAL DO PIXO
Algumas
perguntas e uma definição provisória
Primeiramente,
um esclarecimento: pixo vai com x porque lembra lixo, e o ato de pixar não
respeita as leis, muito menos as ortográficas.
São Paulo é
outra coisa, não é exatamente amor, é identificação absoluta – cantou Itamar
Assunção1. Mas o que é São Paulo? Identificação absoluta? Será?
Ninguém anda um
quarteirão em São Paulo sem avistar muros, portões, pontos de ônibus e outros
logradouros logomarcados com símbolos e palavras de difícil compreensão. São os
pixos. Já disseram que em São Paulo há edifícios que parecem cadernos de
caligrafia gigantes. Dizem até que há quem visite a cidade exclusivamente para
ver prédios pixados. Os pixos são uma espécie de anticartão do postal de São
Paulo2, que também expõe frases políticas e até versos em suas
fachadas, mas em menor quantidade.
As pixações não
são exclusividade paulistana. Muito pelo contrário. Mas, parece-me que, quanto
maior a cidade, mais pixos. Não é comum observar símbolos e palavras
praticamente indecifráveis nos muros de cidadezinhas do interior. Talvez o
fenômeno tenha a ver com a solidão aglomerada3 das megalópoles. Se for isso,
é possível que minha impressão esteja correta e a maior cidade do hemisfério sul
– São Paulo – realmente seja a capital do pixo, que é a estética da barbárie.
Se as pixações
estão em todos os cantos, talvez tenham algo a dizer sobre a cidade. O que
dizem os pixos?
Hipótese 1
Havia
centenas de nascentes e cursos de água em São Paulo. Com o crescimento
desordenado, nascentes foram fechadas e cursos de água viraram escoadouros de
esgoto canalizados debaixo do asfalto. Várzeas e lagoas foram aterradas pela
especulação imobiliária. Para esconder vergonhas e aumentar lucros, foram construídos
edifícios sobre várzeas e lagoas aterradas.
Nas
últimas décadas do século XX, quando a cidade havia escondido suas vergonhas,
os cidadãos desenvolveram o estranho hábito de logomarcar os muros com símbolos
e palavras de difícil compreensão. Quanto mais punição, pintura e limpeza, mais
registros praticamente indecifráveis. São as vergonhas da cidade reexpostas.
Hipótese 2
Gilles
Lipovetsky enxerga um movimento de sedução superestetizada na
arquitetura contemporânea, que empenha-se em surpreender, encantar e tocar
as sensações visuais e táteis do público: a utopia foi suplantada pelo
fetichismo da personificação da construção, o culto dos objetos singulares, a
sedução das formas fluidas e as curvas livres, em sintonia com a cultura
hedonista do consumismo triunfante4. O filósofo define o fenômeno como a arquitetura do
espetáculo.
O pixo é um rechaço
contra a sedução superestetizada da sociedade do espetáculo, incluindo a
arquitetura. É um grito dos que não se sentem contemplados pelo capital, porque
não têm dinheiro para consumir e/ou porque rechaçam a sociedade de consumo,
ainda que não saibam como substituí-la.
Existe amor
por SP
Um amigo me
contou que, tendo que trabalhar na Amazônia, começou a sentir saudade de São
Paulo. Para matar a saudade, sintonizava programas policiais, que odiava, mas
que às vezes mostravam as marginais, as ruas e as avenidas paulistanas, de
forma que podia rever a cidade.
O exemplo do meu
amigo mostra que existe amor por São Paulo. Mas é um amor estranho que se
manifesta pelo avesso. São Paulo agride seus habitantes, que agridem a cidade.
Como nos pixos?
Seja
como for, uma coisa
certa, o amor por São Paulo não tem nada a ver com o ufanismo bocó a la nosso
céu tem mais estrelas, nossas várzeas têm mais flores, nossos bosques têm mais
vida, nossa vida mais amores5.
É exatamente o contrário. Só não sei se chega a ser identificação absoluta,
como cantou Itamar Assunção.
Algumas
imagens e uma possibilidade
Gosto de andar
por São Paulo. Com alguma atenção, é possível observar os caminhos percorridos
pelos cursos de água que correm por baixo de escadões, vielas e canteiros.
Todos canalizados e pixados. Como devia ser bonita a cidade antes do concreto e
das canalizações, com centenas de cursos de água que corriam para interior...
Como é
desagradável a cidade atual, com milhares de edifícios censurando o
horizonte6,
muitos logomarcados com símbolos e palavras de difícil compreensão, o que
indica, pelo menos, que alguém veio de longe, provavelmente da periferia, e se
arriscou para esfregar na cara da sociedade que não concorda com as coisas como
são e estão.
Há no pixo um
quê de esporte radical, mas com uma diferença importante, a descarga de
adrenalina não tem a ver apenas com a superação de limites físicos, é também um
tapa na cara do Estado, das leis, da propriedade privada, da polícia, dos
“cidadãos de bem”. Não é pouco. Dias Gomes afirmou que quem não veio ao
mundo para incomodar não deveria ter vindo. Se é assim, o pixo está
ontologicamente justificado.
Vejo o pixo como
o vapor que sai pela válvula da panela de pressão. Se o pixo é o vapor, São
Paulo é a panela de pressão, que pode explodir a qualquer momento, como em
junho de 2013.
[1] Versos
da canção Persigo São Paulo.
[2] Ver
os documentários Pixo, Pixadores em ação, Um grito em meio aosilêncio: pixo.
[3] “Aglomerada solidão” é um verso da
canção São, São Paulo, de Tom Zé.
[4] Lipovetsky,
G., Da leveza. Barueri: Amaralys,
2016.
[5] Versos
do poema Canção do Exílio, de
Gonçalves Dias.
[6] Prédios:censuradores de horizontes. Sacada da camarada Danimar.
Publicado
originalmente no Passa Palavra
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