TÃO LONGE, TÃO PERTO: 150 ANOS DA COMUNA DE PARIS
A
Comuna de Paris completou 150 anos em 18 março. Foi uma experiência fundamental
para o proletariado, influenciou lutas posteriores como, por exemplo, a
Revolução Russa. Apesar de ter durado apenas 72 dias, colocou, pela primeira
vez, a possibilidade concreta de emancipação do trabalho. A radicalidade da
Comuna de Paris contrasta com os limites do tempo presente. Atualmente, a
emancipação do trabalho, parece, ao mesmo tempo, mais possível e mais difícil. Daí
o título, tão longe, tão perto.
A
Comuna de Paris se comunicava por meio de cartazes, experiência retomada,
posteriormente, no maio de 1968 francês. Alguns cartazes e decretos da época
podem ser consultados aqui. Dando continuidade à discussão iniciada na aqui, comento algumas comunicações da Comuna de Paris, todas
reais, com exceção da última, que não ocorreu. É uma tentativa de pensar o
processo revolucionário a partir dos documentos produzidos no calor dos
acontecimentos.
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No
início de setembro de 1870, o imperador francês, Napoleão III, foi capturado
pelos prussianos junto com milhares de soldados. Em 04 de setembro, a
Assembleia Legislativa a proclamou a República. Em 14 de setembro, o Comitê
Central Republicano de Defesa dos 20 Distritos de Paris, formado por 4 delegados
de cada distrito, informou, em um cartaz, sobre a criação de Comitês de
Vigilância e Defesa, além de fazer reivindicações relacionadas à segurança
pública, alimentação, moradia e defesa. Ali estava delimitado o “programa” da
Comuna de Paris:
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Eleição para magistrados.
-
Supressão da polícia, que deveria ser substituída pela Guarda Nacional formada
por trabalhadores.
-
Liberdade de expressão, reunião e associação.
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Expropriação, com reembolso posterior à guerra, de alimentos e outros produtos.
Divisão das provisões entre os parisienses de forma proporcional enquanto
durasse o cerco à cidade.
-
Garantia de moradia para toda a população de Paris.
-
Fornecimento aos Comitês dos 20 Distritos de recursos materiais e humanos para
que pudessem organizar a defesa dos bairros.
-
Controle popular sobre a política de defesa.
-
Distribuição de armas para que a população parisiense se defendesse. Mobilização
de todos os cidadãos aptos para a defesa da cidade, inclusive mulheres e
crianças, porque Paris estava disposta a sepultar-se sob suas ruínas, sem se
render.
Ao
final, o Comitê Central Republicano de Defesa dos 20 Distritos de Paris diz
estar convencido de que o Governo de Defesa Nacional adotaria as medidas
propostas. Não ocorreu. Nem poderia. As reivindicações eram radicais demais
para o Estado burguês, principalmente porque propunham privá-lo do controle sobre
as forças repressivas. As medidas citadas foram o eixo em volta do qual se
organizou, posteriormente, a Comuna de Paris. Vale ressaltar que a Guarda
Nacional começou a ser mobilizada em agosto de 1870, a possibilidade de
conseguir alguma renda somada à disposição para a luta atraiu trabalhadores. Além
de atacar o controle estatal sobre as forças repressivas, as medidas apontavam
para uma reorganização social com liberdade de expressão, direito à moradia e distribuição
de alimentos. Também transparece o estado de espírito dos parisienses, que
estavam dispostos a serem sepultados sob as ruínas da cidade, mas sem se
renderem. O cartaz é seis meses anterior à Comuna de Paris, que se constituiu quando
ficou nítido que o governo não atenderia às reivindicações dos trabalhadores,
além de sabotar a resistência.
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06
de janeiro de 1871, um cartaz assinado pelos delegados dos 20 Distritos de
Paris denunciou o Governo de Defesa Nacional, que estava preocupado em negociar
a rendição, ignorando as necessidades da resistência, como fabricar armas e
recrutar combatentes. Os delegados denunciaram que militares bonapartistas
haviam sido mantidos em seus postos, enquanto republicanos estavam presos.
Denunciaram, também, a fome provocada pelo cerco de Paris. O povo deveria tomar
a responsabilidade pela libertação. A Comuna aparece como única possibilidade
de salvação coletiva.
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29 de março de 1871, onze dias depois do levante e três dias após
a eleição de membros para o Conselho da Comuna, um cartaz informou que não
poderia ser criada nem introduzida em Paris nenhuma força militar diferente da
Guarda Nacional. Era a concretização da reivindicação inicial, reafirmando o
controle popular sobre a força pública, medida inaceitável para a burguesia,
que para garantir sua existência como classe, precisa controlar as forças
repressivas por meio do Estado.
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30 de março de 1871, cartazes fixados no 2º e no 20º distritos
convocaram professores para instaurar a educação laica, gratuita e obrigatória,
como forma de superar os dogmas religiosos que renegam a ciência, consagram
privilégios e legitimam a exploração. Vale destacar que, nos tempos da Comuna,
a educação não era universal, além de ser controlada pela Igreja, que ensinava
o conformismo e a submissão. A classe trabalhadora já havia organizado
experiências educativas autônomas. A Comuna herdou iniciativas e técnicas
pedagógicas desenvolvidas anteriormente pelo proletariado parisiense. A
educação comunal tentou romper a separação entre trabalho manual do intelectual
e, assim, apontou no sentido da emancipação da classe trabalhadora.
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30 de março de 1871, cartaz fixado no 2º Distrito proibiu a
circulação de prostitutas pelas ruas. Quem desobedecesse seria detida pela
Guarda Nacional. Os delegados responsabilizam a falta de educação e de trabalho
pela prostituição, reconheceram as prostitutas como vítimas de uma sociedade
perversa. Afirmaram que a reorganização social, incluindo o trabalho feminino,
resolveria o problema. Mas não ofereceram nenhuma contrapartida ou alternativa
imediata para as mulheres proibidas de circular pelas ruas.
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01 de abril de 1871, a Comissão de Trabalho intermediou a
contratação de trabalhadores, solicitou que informassem as respectivas
profissões e necessidades, enquanto as empresas informariam as vagas
disponíveis e as exigências para a contratação. O cartaz indica que as relações
de produção capitalistas não haviam sido superadas.
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02 de abril de 1871, ficou estabelecido, por decreto, que os
funcionários da Comuna não poderiam receber mais que seis mil francos anuais,
salário condizente com os valores recebidos por operários. A medida foi reivindicada,
posteriormente, em programas e processos revolucionários. O Estado – entendido,
fundamentalmente, como um comitê gestor da burguesia – separa o funcionalismo
em faixas salariais, remunerando mais e melhor os responsáveis por funções
estratégicas para o funcionamento das relações de produção capitalista,
engajando-os. É o que ocorre, atualmente, com os setores responsáveis pela
repressão: juízes, promotores, militares de alta patente. Ao reduzir os
salários dos seus funcionários, a Comuna apontou no sentido da superação do
Estado. Foi um governo barato. Não era mais necessário gastar altas somas com pessoal
responsável por reprimir trabalhadores.
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03 de abril de 1871, a Comuna de Paris decretou a separação da
Igreja do Estado, medida que incluiu o confisco de bens e a supressão do
financiamento público das religiões. Ao enfrentar a Igreja, a Comuna fez o que
as revoluções burguesas não fizeram, uma vez que, ao assumir o controle do
Estado e consolidar as relações de produção capitalistas, a burguesia precisou
da ideologia para azeitar as engrenagens sociais. Vale lembrar que, na França,
a Igreja influenciava a educação da classe trabalhadora ensinando o conformismo
e a submissão. Ao separar a Igreja do Estado, a Comuna de Paris deu um passo
importante no caminho da emancipação do trabalho.
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07 de abril de 1871, a Comuna de Paris anunciou a criação de três
restaurantes populares no 8º Distrito. Era uma tentativa de garantir as
necessidades básicas, com perspectiva de avançar também para questões
relacionadas à subsistência, moradia, vestuário e educação. Está registrado no
cartaz: A miséria é uma praga que engendra a desordem. O trabalho é uma
riqueza que fertiliza os bons sentimentos. Garantir trabalho a todos é a nossa
meta. Vale destacar que a contrapartida, oferecida pelos cidadãos, era o
trabalho que pudessem fornecer à comunidade. Apesar de ser uma medida emergencial,
a criação de restaurantes populares e a possibilidade de trocar alimentos por
trabalho indica que a Comuna era portadora, em potência, da superação das
relações capitalistas de produção.
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16 de abril de 1871, a Comuna de Paris convocou, por decreto, as
organizações operárias para identificar fábricas abandonadas pelos patrões e
apresentar um projeto para retomada das atividades pelos trabalhadores.
Novamente, tratou-se de medida emergencial, mas apontou para o controle
operário sobre a produção e, consequentemente, para a emancipação do trabalho.
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27 de abril de 1871, a Comissão Executiva da Comuna de Paris informou,
por meio de um cartaz, a proibição de multas e deduções sobre os salários,
prática empregada pelo capital para ampliar lucros. A medida indica, ao mesmo
tempo, que vigoravam relações capitalistas de produção e que a Comuna atuou na
estrutura produtiva da sociedade.
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01 de maio de 1871, foi anunciada a criação de um orfanato onde
antes havia uma escola gerida pela Igreja. Os órfãos teriam a companhia de
outras crianças. Todas receberiam a mesma educação. O cartaz informa que os
soldados da Guarda Nacional de Paris não deviam temer pelo futuro dos filhos,
caso caíssem em combate, porque a Comuna garantiria a existência dos órfãos e a
memória dos revolucionários tombados. Era um momento em que os prussianos já
haviam libertado milhares de soldados franceses para combater os comunardos,
que, apesar a intensificação da luta, mantiveram a preocupação com a educação
laica e o cuidado com os órfãos.
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06 de maio de 1871, a União de Mulheres elaborou manifesto rechaçando
o cartaz de um grupo anônimo, que afirmou que as mulheres parisienses pediam a
paz a qualquer preço. A União de Mulheres rechaçou a generosidade dos
assassinos e informou que a liberdade (de Paris) não podia conviver com o
despotismo (de Versalhes). Qualquer conciliação significaria trair a demanda
operária por renovação social, superação de privilégios, fim da exploração e,
sobretudo, emancipação do trabalho. O cartaz da União de Mulheres foi um dos
textos mais firmes e avançados da Comuna: Paris não retrocederá porque
carrega a bandeira do futuro! As mulheres informaram que estariam nas
barricadas para combater os verdugos caso tentassem entrar na cidade, o que se
confirmou dias depois.
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09
de maio de 1871, um cartaz informou sobre a criação de quatro armazéns para
venda de gêneros alimentícios no 14º Distrito. O objetivo era evitar a
especulação e a alta dos preços, como havia ocorrido anteriormente. Era uma
medida emergencial, mas apontou para a reorganização e a transformação das
relações sociais.
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Os
últimos cartazes da Comuna são chamados à resistência: Às armas! Que Paris
se cubra de barricadas e que, atrás das muralhas improvisadas, lance novamente
seu grito de guerra aos inimigos, grito de orgulho, grito de desafio, mas
também grito de vitória; porque Paris, com suas barricadas, é inexpugnável. O
que o primeiro cartaz citado informava, e a história comprovou, foi que os
parisienses não se renderiam, prefeririam ser sepultados sob as ruínas das
cidades.
Considerando
todo o heroísmo dos comunardos e o processo de transformação social em curso,
chama a atenção uma comunicação e uma ação que não foram realizadas. A Comuna
de Paris não interveio no Banco da
França, que chegou a repassar 16,7 milhões de francos para os revolucionários,
financiando, inclusive, a manutenção da Guarda Nacional, mas, ao mesmo tempo,
repassou 315 milhões de francos ao governo estabelecido em Versalhes. Os dados
são de Michael
Roberts.
O
chefe do Banco da França não foi substituído. Os comunardos também mantiveram o
delegado responsável pelas finanças da Comuna, apesar dos mandatos revogáveis e
da possibilidade de trocá-lo. O ótimo filme La
Commune, de Peter Watkins, sugere que o controle sobre o Banco da França
estava colocado para os revolucionários (ver aqui e aqui). Mas prevaleceu a posição do delegado responsável pelas
finanças, o proudhoniano Charles Beslay: o sistema da Comuna e o meu se
traduzem nesta palavra sagrada: respeito pela propriedade, até sua transformação.
Beslay foi para a Suíça após a destruição da Comuna de Paris, o governo
francês sequer o processou. Os comunardos colocaram o povo em armas e
combateram a religião, derrubando dois pilares de sustentação do capital. Faltou
controlar o Banco da França: para cortar o financiamento do inimigo e usar os
recursos no fortalecimento do processo revolucionário.
Publicado originalmente no Passa Palavra.
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