SOBRE O ROMANCE
Entre 1967 e 1968, com quase 70 anos e
praticamente cego, o escritor argentino Jorge Luis Borges proferiu palestras
sobre literatura em Harvard. Posteriormente, as palestras foram transcritas e
reunidas no livro Esse ofício do verso.
São textos saborosos. A memória e a erudição de Borges impressionam. Ele cita e
comenta textos e versos de cabeça. Coloca-se mais como leitor do que escritor. Deixa
a impressão de que poucos leram tanto quanto ele. Discute tradução, metáforas, música
das palavras. Diz que os poetas deveriam ser anônimos, porque ele próprio às
vezes descobria que estava apenas citando, involuntariamente, em seus escritos,
palavras lidas em outros autores. Confessa ter enganado amigos atribuindo
metáforas a antigos persas e nórdicos, porque ninguém as aceitaria e diria que
eram um “primor” se soubesse que tinham sido elaboradas por um “reles
contemporâneo”. Questão interessante e polêmica é concepção de Borges sobre o
romance. Ele afirma que foi principalmente por preguiça que nunca escreveu um
romance, mas não só. Diz nunca ter lido um romance sem sentir “certo fastio”, o
que teria a ver com o “recheio” das obras. Para Borges, bons contos – por
exemplo, de Henry James e Rudyard Kipling – são tão complexos e mais prazerosos
do que longos romances. Para o escritor argentino, o romance estava em declínio
e tendia a desaparecer, apesar dos experimentos interessantes como o
deslocamento temporal e a possibilidade da história ser contada por personagens
diferentes. Borges se coloca a favor da
épica, não somente por uma suposta superioridade do verso sobre a prosa, mas
porque no futuro contar uma história se reencontraria com o canto, reabilitando
os poetas. Borges se incomodava porque nos romances prevalece a “aniquilação de
um homem” e a “degradação do caráter”, enquanto na épica os heróis eram
exemplos para os demais.
Marx não escreveu especificamente sobre
estética, mas em vários textos registrou ideias que permitem pensar a arte a
partir do materialismo histórico. Ao tomar contato com o argumento de Borges,
segundo o qual o contar uma história se reencontraria com o canto, reabilitando
a épica, lembrei de alguns trechos em que Marx diz mais ou menos o contrário.
Estão na Contribuição à crítica da
Economia Política. Marx pergunta se Aquiles é compatível com a pólvora, se
as musas não desaparecem diante da régua do tipógrafo, assim como haviam
desaparecido as condições necessárias para a poesia épica. Mais à frente, no
mesmo texto, afirma que a dificuldade não está em relacionar a arte ao
desenvolvimento social, questão mais difícil é pensar por que obras antigas
proporcionam prazer estético, além de conterem, sob certos aspectos, o valor de
normas e modelos inalcançáveis (penso, por exemplo, em Borges atribuindo
metáforas a antigos persas e nórdicos, porque ninguém as aceitaria se soubesse
que tinham sido elaboradas por um “reles contemporâneo”). Marx prossegue
citando os gregos: “Por que a infância histórica da humanidade, ali onde
alcançou o seu mais belo florescimento, numa etapa de desenvolvimento para
sempre encerrada, não haveria de exercer um eterno fascínio?” O encanto da arte
grega não estaria em contradição com o débil desenvolvimento da sociedade em
que floresceu, era, antes, o produto de condições sociais “insuficientemente
maduras”, que não retornariam e que eram as únicas que poderiam ter gerado aquele
encantamento.
Voltemos ao romance. Iniciemos com uma
definição. Milan Kundera[1] entende
o romance como “a grande forma de prosa em que o autor, através dos egos
experimentais (personagens), examina até o fim alguns grandes temas da
existência.” Borges afirma que o “recheio” dos romances causava-lhe “certo
fastio”. A questão é que bons romances não precisam ser recheados, antes pelo
contrário. Sabe-se, com Juan Rulfo e Graciliano Ramos, que escrever, inclusive e
talvez principalmente no caso dos romances, tem muito mais a ver com cortar e
enxugar do que com rechear. Rulfo[2]:
“No começo, você deve escrever levado pelo vento, até sentir que está voando. A
partir daí, o ritmo e a atmosfera se desenham sozinhos. É só seguir o voo.
Quando você achar que chegou aonde queria chegar é que começa o verdadeiro
trabalho: cortar, cortar muito.” Graciliano[3]: “Deve-se escrever da mesma
maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma
primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o
pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem
uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água
com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e
mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito
tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para
secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa.” Se é assim, bons
romances formam uma totalidade orgânica, inseparável e irredutível, que
prescinde de recheios.
Pensando em Madame Bovary, parece-me que a potência estética pode estar
justamente no que algum desavisado[4]
talvez chamasse de “recheio” do romance, mas que é inseparável do texto.
Histórias sobre adultérios são comuns. Mas em Madame Bovary são misturadas “imagens voluptuosas a elementos
sagrados”, produzindo uma espécie de “poesia do adultério” – as palavras entre
aspas são do promotor que levou Flaubert para o banco dos réus por ter escrito o
romance[5]. Há uma passagem saborosa
com a tal “poesia do adultério”, que enfurece os moralistas, é quando Emma
Bovary se encontra com o amante numa igreja:
"León,
a passos lentos, caminhava rente à parede. Nunca a vida lhe parecera tão boa.
Ela chegaria dentro de pouco tempo, adorável, agitada, espiando atrás de si os
olhares que a seguiam – e com seu vestido de folhos, seu lornhão
dourado, suas botinas finas, com toda a elegância que ele ainda não saboreava e
com a inefável sedução da virtude que sucumbe. A igreja, como uma gigantesca
alcova, disporia-se em torno dela; as abóbodas inclinariam-se para recolher na
sombra a confissão de seu amor; os vitrais resplandeceriam para iluminar seu
rosto e os incensórios queimariam para que ela aparecesse como um anjo, no
vapor dos perfumes."
A acusação formal contra Flaubert atesta
a força do romance. Fazer dois amantes se encontrarem numa igreja, como se
fosse uma alcova preparada especialmente para o casal... Falar da “inefável
sedução da virtude que sucumbe” dentro de uma igreja... Seria possível ir tão
longe em um conto ou em um poema? Que outra arte, senão o romance, permitiria
uma provocação tão iconoclasta? Intimado pelo tribunal a dizer em quem se
baseou para criar a grande adúltera, Flaubert respondeu “Emma Bovary sou eu”.
Em certo sentido, era mesmo, frequentaram os mesmos ambientes, leram os mesmos
livros, sentiram o mesmo tédio, que, diga-se de passagem, o escritor
propositalmente faz o leitor experimentar ao passar pelo que algum desavisado
talvez definisse como o “recheio” do romance.
Se o tempo presente é de homens
partidos, como escreveu Drummond, é difícil imaginar que contar e cantar uma
história possam se reconciliar, como quer Borges. A “aniquilação de um homem” e
a “degradação do caráter”, que incomodam o escritor argentino, não estão no
romance, estão na realidade, que enlouqueceu Dom Quixote, aniquilou Anna
Karenina, metamorfoseou Gregor Samsa[6].
Enquanto existir capitalismo, entendido
como um modo de produção que desenvolve as forças produtivas da sociedade
contrapondo-as aos indivíduos, o romance seguirá existindo como campo
privilegiado de expressão, como possibilidade de recriar a vida e a sociedade.
Haverá sempre alguém disposto a explorar algum aspecto da existência e, para
isso, o romance é a ferramenta mais apropriada, inclusive porque nele é
possível integrar a poesia, a filosofia e outros saberes. Não há arte melhor
equipada para captar o estranhamento produzido pela separação dos produtores em
relação aos meios de produção. Ou, como nos termos de Milan Kundera[7]: “na época da divisão excessiva do
trabalho, da especialização desenfreada, o romance é um dos últimos lugares
onde o homem ainda pode guardar relações com a vida em seu conjunto.” Se é
assim, não é coincidência o romance ter se desenvolvido paralelamente ao
capitalismo: enquanto este promove uma intensa divisão do trabalho e dos
saberes, aquele resiste quase como uma última trincheira.
Vou mais além e fecho com uma intuição. Mesmo
a possível superação do capitalismo não significa necessariamente a superação
do romance, entendida como reencontro do contar com o canto, reabilitação dos
poetas ou como queiram chamar e definir. Consigo imaginar a superação do
capitalismo. Tenho dificuldade para imaginar a superação do romance.
Notas
[1]
A definição citada está no livro A arte
do romance, no ensaio Sessenta e três
palavras.
[2]
A citação de Juan Rulfo está na nota do tradutor, Eric Nepomuceno, numa edição
de bolso (BestBolso) do romance Pedro
Páramo.
[3]
A comparação da escrita com o ofício das lavadeiras de Alagoas foi feita por
Graciliano Ramos numa entrevista concedida em 1948.
[4]
Não sei se Borges iria tão longe a ponto de criticar o “recheio” de Madame
Bovary. Sendo assim, o “desavisado” não se refere ao escritor argentino.
[5]
Boas sacadas sobre a escrita de Flaubert, como a que reproduzi, estão no livro A orgia perpétua, de Mario Vargas Llosa.
Sobre a grande adúltera, relida depois de ler Llosa, escrevi Emma
Bovary: a condenação perpétua.
[6]
Para uma leitura sobre a relação trabalho e saúde em A metamorfose, de Franz Kafka, ver Gregor Samsa: insegurança e
adoecimento de um trabalhador.
[7] O trecho citado está no livro A arte do romance, no ensaio Anotações inspiradas por Os sonâmbulos.
Publicado originalmente no Passa Palavra
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