BACURAU E RECIFE FRIO: DA NEVE AO CAOS
Há
no Recife uma outra chuva
(embora
rara), rala, miúda.
Não
como a chuva da chuvada,
que
cai, agride, e é pedra de água,
passa
em peneiras esta chuva,
não
traz balas, não tranca ruas:
mas
faz também ficar em casa,
quem
pode, antevivendo o nada.
(João
Cabral de Melo Neto)
Prolegômenos
Bacurau é um longa-metragem de 2019.
Recife Frio é um curta-metragem de 2009. Bacurau é um filme de Kleber Mendonça
Filho e Juliano Dornelles. Recife Frio é um curta de Kleber Mendonça Filho,
Juliano Dornelles atuou como diretor de arte. As duas obras foram premiadas e
reconhecidas. Bacurau foi sucesso de público, o que motivou centenas de resenhas
contra e a favor. Em geral, os críticos apontaram as referências do longa aos
filmes de terror de John Carpenter, aos faroestes, ao cinema novo; no caso do
curta, destaca-se por si própria a questão das mudanças climáticas, mas há
muito mais.
Comparação possível e, salvo engano, não
realizada, pode ser estabelecida entre Bacurau e Recife Frio, este não foi
colocado entre as dezenas de referências daquele, e nem podia ser. Mas ambos
foram concebidos na mesma época e iniciam com a mesma inscrição: “daqui a
alguns anos...” Nos dois o mal vem de fora e altera a rotina. Recife Frio fecha
com Lia de Itamaracá cantando e dançando numa praia gelada. Bacurau inicia com o
funeral da matriarca do povoado, interpretada por Lia de Itamaracá. Bacurau é
um pássaro noturno, e é, também, o nome de um ônibus recifense, o último da
madrugada. Recife Frio é um oximoro, uma figura de linguagem que anuncia uma
verdade com aparência de mentira. Em Bacurau, um bando de assassinos
estrangeiros, apoiados por dois sulistas e pelo prefeito local, vai ao povoado
para atirar nas pessoas com “armas vintage”. Em Recife Frio, um meteorito cai e
derruba as temperaturas, altera o clima da região, instaura a “república do mau
tempo”: a neve congelou a lama do rio, “quanto mais miséria tem, mais urubu
ameaça”.1 Imagens atuais antevistas: caixões espalhados pelo caminho
(Bacurau), corpos ensacados nos corredores (Recife Frio).
Mas se há semelhanças, mais interessante
é explorar as diferenças. Em Bacurau, a comunidade se une para derrotar os
assassinos e garantir a própria existência, trata-se de manter e não de
revolucionar a vida, a contradição se estabelece entre locais e estrangeiros, todos
idealizados: bem contra o mal, hollywoodianamente, o público é incentivado a tomar
partido da comunidade atacada. Em Recife Frio, a mudança brusca do clima
instaura a “república do mau tempo”, aumentam as contradições sociais, que o curta
denuncia sem promover identificações fáceis. Bacurau faz caricatura dos que se
manifestam pela direita, com camisas da seleção brasileira e bandeiras
estadunidenses. Recife Frio pode ser lido em relação às mudanças climáticas
negadas pela direita, mas destaca as contradições sociais.
Kleber Mendonça Filho afirmou que
“Bacurau é um exercício sem vergonha em ser de gênero.” Acrescento. Daí a
catarse, a identificação fácil e o sucesso de bilheteria. Recife Frio subverte
as fronteiras dos gêneros. É documentário, drama, comédia, ficção científica.
Acrescento. Daí a força poética do curta.
Da
capital para o sertão?
Na ficção, o povoado é tirado dos mapas
eletrônicos pelos assassinos estrangeiros. Na realidade, o idílio sertanejo
nunca existiu: a miséria, a fome, a seca, o mandonismo latifundiário sempre
estiveram presentes. O contraponto concreto a Bacurau é Toritama2,
cidade em que população foi transformada em exército de trabalhadores
precarizados, que produzem calças jeans: a ameaça são as máquinas têxteis e não
as “armas vintage”.
Kleber Mendonça é obcecado por Recife, como
o poeta João Cabral. A maioria dos trabalhos do diretor dialoga com a cidade:
verticalização, desigualdade, exclusão, violência, milícias, herança
escravista. Os famigerados quartos de empregada – senzalas do tempo presente – aparecem
em longas e curtas do diretor. Em Recife Frio, com a mudança climática, o filho
de uma família endinheirada – “vítima arquitetônica do frio” – exige o quarto
da empregada, que não tem ventilação, não é virado para o mar e, por isso, é
mais quente. Bacurau é um pássaro noturno e dá nome ao último ônibus do Recife.
Seria o filme um movimento em direção ao sertão? Para dentro e para trás? Uma
fuga da visão do nada? Recife retratada nos filmes de Kleber Mendonça, como O
Som ao Redor e Aquarius, é uma cidade crivada de contradições, como todas as
capitais brasileiras. A modernidade discutível não supera a herança colonial,
reforça-a. É o ponto forte dos filmes de Kleber Mendonça sobre o Recife. Mas
como voltar a filmar a cidade depois de Aquarius e O Som ao Redor? É possível
rodar um filme ainda mais claustrofóbico e sem saída do que os dois citados? Melhor
evitar a visão sombria? O tempo responderá.
Daqui
a alguns anos...
Bacurau e Recife Frio foram concebidos
na mesma época e a partir de uma ideia-chave semelhante: alterações provocadas
por fenômenos externos às sociedades, mas com sinal trocado. No longa, o
povoado se une para combater os assassinos estrangeiros, contradições locais
são ignoradas em proveito do bem comum. No curta, as alterações climáticas
potencializam as contradições sociais, quem pode mais chora menos, a corda
arrebenta no lado mais fraco, não é difícil imaginar que os corpos ensacados no
corredor são de pobres vitimados pelo frio. O primeiro ter sido um sucesso de
público não é coincidência, além de fazer uso de simplificações hollywoodianas,
oferece exatamente o produto demandado por parte do público.
Houve críticas fortes e certeiras a
Bacurau. a) “Todos os que foram ao
cinema procurar um filme que se contrapusesse ao terrível estado de nossa
sociedade saem aliviados por terem visto nas telas a justiça; na vida real,
tudo permanece igual. E, involuntariamente, o filme contribui para,
efetivamente, manter as coisas tal como são [...] A forma ‘popular’ tomada de
Hollywood pode garantir grandes momentos catárticos e boas bilheterias, mas
para conseguir falar da verdade e incitar uma mudança social é preciso procurar
caminhos distintos.”3 b) “Não chamamos a atenção para o excesso de alegoria, como se
faltasse ‘realismo’, mas sim o contrário: as figuras postas em movimento pelo
filme são excessivamente simplórias, de um realismo rasteiro e fraco de
imaginação [...] Estamos às voltas de um
desejo irreprimível da esquerda brasileira, o anseio pelo retorno de um pacto
que começou a ser desfeito em 2013 [...] única coisa verdadeiramente sutil
em Bacurau é a paródia da própria esquerda, obviamente efeito não calculado
pelos diretores.”4
Mas a
crítica mais contundente a Bacurau foi a da realidade, veio poucos meses após o
lançamento do filme. A pandemia da COVID-19 alterou a vida e potencializou
contradições sociais. Políticos genocidas adotam medidas de extermínio, como
exigir a abertura do comércio no pico da doença. Reacionários negacionistas organizaram
carreatas da morte, em carros fechados exigem que os demais se exponham ao
vírus. O real está mais para Recife Frio do que para Bacurau. O quadro
distópico e anti-hollywoodiano não dá retorno de bilheteria, mas é o que
prevaleceu na quarentena. Quem pode fica em casa, antevivendo o nada, como no
poema de João Cabral de Melo Neto. Quem não pode ficar em casa, arrisca-se, vai
buscar o pão de cada dia, apesar do vírus. O velho está morrendo, o novo ainda
não nasceu.
A metáfora da sombra
Recife
foi uma das sedes da Copa do Mundo de 2014. No meio do caminho tinha um
megaevento. Kleber Mendonça Filho dirigiu o documentário A Copa do Mundo no
Recife. Reparando bem, estava tudo lá: a gentrificação, a classe média com a
camisa da seleção brasileira, a militarização, os shoppings, a verticalização e
até os estrangeiros, que, se não caçavam pessoas com “armas vintage”, percorriam
a cidade atrás de sexo e cocaína.
O roteiro
é batido, com pequenas variações, foi encenado em todo o país. Em 2008, durante
o governo Lula e num leilão duvidoso, empreiteiras adquiriram o cais José
Estelita, terreno federal de cerca de 100 mil metros quadros, que abrigava
galpões da antiga rede ferroviária. O projeto arquitetado pelas empreiteiras e aprovado
pela prefeitura petista: construir um condomínio de luxo, 13 torres com até 40
andares. Os financiadores de campanha exigem retorno dos investimentos
eleitorais. As esferas municipal, estadual e federal concordam e obedecem sem
questionar. A população reagiu com o movimento Ocupe Estelita5:
música, arte e cultura contra a especulação imobiliária, pela democratização da
cidade. Vale lembrar que, anteriormente, haviam sido erguidas as “torres gêmeas”,
com 41 andares, descaracterizando o patrimônio histórico do Recife. Kleber
Mendonça usou recursos digitais para excluir os edifícios gigantes da paisagem
no longa Aquarius. Em 2014, no dia em que a seleção brasileira enfrentou a
mexicana, na cidade do Recife, a tropa de choque foi enviada para expulsar o
movimento Ocupe Estelita. A prefeitura era do PSB. O governo de Pernambuco era
do PDT. A presidência da república estava com o PT.
As
imagens da repressão ao movimento Ocupe Estelita integram o documentário A Copa
do Mundo no Recife, de Kleber
Mendonça, que encerra com uma antevisão do nada: a câmera percorre um campo de
futebol abandonado, com a grama alta, enquanto ouve-se a narração dos primeiros
lances da partida entre Brasil e Alemanha, o 7 x 1. Segundo o comentarista,
apesar do excelente toque de bola alemão, a seleção brasileira estava muito
bem. Deu no que deu. O resultado é conhecido. A Copa do Mundo organizada para
consolidar o Brasil potência virou um fiasco esportivo e social: uma seleção
humilhada, dezenas de obras tão superfaturadas quanto inúteis. A economia que,
segundo todos os analistas, tinha “fundamentos sólidos” – mantra repetido ad nauseam –, desmoronou. Bombas, gases
e cassetetes passaram a compor o ecossistema das cidades brasileiras.
A
repressão ao levante de junho de 2013 demarca o colapso do “neoliberalismo de
esquerda” no Brasil. Necessário registrar que, se é neoliberal, não pode ser de
esquerda, e isso se aplica ao PT, daí as aspas. O “neoliberalismo de esquerda” colapsou
quando o regime se mostrou absolutamente incapaz de absorver as pautas das
ruas: educação, saúde, transporte público de qualidade. Naqueles dias quentes
se dizia que um professor vale mais que o Neymar, queremos hospitais padrão Fifa,
passe livre já... Enquanto bombas de efeito moral, gases lacrimogêneos, balas
de borracha e cassetetes respondiam, em nome do Estado, do capital e dos
partidos da ordem. O resultado era previsível. Se a esquerda institucional não
consegue sequer frear as ruas, se não dialoga com elas, não serve para nada,
daí a substituição de gestores ocorrida em 2016 e aprofundada em 2018. Se é
para reprimir abertamente, melhor passar o cassetete para a direita puro sangue.
Os fantoches de verde amarelo protestando nas ruas eram apenas a aparência
visível do fenômeno. A decisão foi da burguesia brasileira.
Mas se a
repressão aos levantes de junho de 2013 marca o início do fim do
“neoliberalismo de esquerda”, se o 7 x 1 simboliza uma mentira subitamente
revelada, se o gigante adormeceu no berço esplêndido, há uma metáfora sutil que
foi construída nos anos de falsa fartura, financiada pela alta dos preços das commodities
e pelo crédito transbordante: a sombra sobre as praias. Nas cidades em que a
especulação imobiliária engordou os caixas das empreiteiras, com apoio de
prefeituras e governos, foram erguidos edifícios gigantes, como as torres
gêmeas do Recife, que não apenas deformam a paisagem. Durante boa parte do dia
as construções bloqueiam os raios do sol. As sombras sinistras dos edifícios
gigantes eram sinais.
Agentes do caos?
O chefe
do bando de assassinos que ataca Bacurau se define como um alemão mais
americano que os americanos. Kleber Mendonça Filho definiu o personagem como um
“louco que atira pedras”, um “agente do caos”. Não está distante da forma como
a esquerda reformista enxerga Bolsonaro e a extrema direita. O caos seria a
ruptura do idílio lulista, teria despencado sobre a sociedade, como uma
tempestade abrupta e imprevisível.
Parte
envolvida na questão como demandante, a esquerda da ordem, representada pelo
petismo e satélites, não enxerga a relação entre a repressão aos protestos
iniciados em junho de 2013 e o fortalecimento da direita. Mas a virada ocorreu exatamente
ali. As pessoas poderiam, com sorte, ser consumidoras e teriam até acesso a
crédito, mas não deviam reivindicar saúde, educação e transporte público de
qualidade. O agronegócio seria incentivado e subsidiado, apesar da destruição
do meio ambiente. O governo organizaria megaeventos, construiria estádios
inúteis e ponto final. Ao capital tudo, aos demais as sobras do banquete. Condomínios
de luxo seriam erguidos em áreas de interesse social, como o cais José
Estelita. Os fundamentos do regime são inegociáveis. Ponto. Bombas e cacetadas
em quem questionar. Um outro mundo não é possível, pelo menos para a esquerda
reformista.
Luz
amarela para o capital. A insatisfação popular explodiu justamente quando os
preços das exportações caíam, e o crédito secava. O superávit primário se
reduzia ameaçando o pagamento da dívida pública. Se não há espaço para a
conciliação, se o reformismo não é capaz de frear a classe trabalhadora, o
petismo e satélites são descartáveis. Os que aparecem como agentes do caos na
visão invertida do reformismo são, em verdade, os gestores escolhidos pela
burguesia para períodos de acirramento da luta de classes.
Se o modo
capitalista de produção é ingovernável, se o socialismo não é colocado na mesa,
se o contraponto à extrema direita é o reformismo bem comportado, não há alternativas:
impõe-se o cada um por si, terreno fértil para os reacionários. Se o capital
prescinde cada vez mais de trabalho vivo, se o exército industrial de reserva
cresceu a ponto de dar prejuízo, por que não eliminar o excesso? Se vigora o just in time para os estoques, por que
não adotar o mesmo procedimento para a mercadoria força de trabalho? No beco
sem saída em que se meteu o capitalismo, os agentes do caos são mais úteis do
que os reformistas. O modo de produção se mantém ampliando suas contradições, daí
a necessidade de aumentar a repressão.
O quadro
é assustador e asfixiante, mas é nas situações limite que surgem as
alternativas. Quando todas as saídas estão fechadas, é preciso arrombar as
portas.
Notas
1 Chico Science &
Nação Zumbi, Da Lama ao Caos: “O sol queimou, queimou, a lama do
rio. Eu vi o chié andando devagar. Vi um aratu pra lá e pra cá. Vi um
caranguejo andando pro sul. Saiu do mangue e virou gabiru. Ô Josué, nunca vi
tamanha desgraça
Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça.”
2 Estou me guardando para quando o
carnaval chegar: faz parte dessa solidão.
3 Bacurau: uma alegoria catártica
dos impasses políticos do nosso tempo.
4 Bacurau, alegoria de um sonho que
morreu.
5 Um pouco da luta do movimento Ocupe
Estelita pode ser vista no documentário Recife, cidade roubada.
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