DRUMMOND, NERUDA E A BATALHA DE STALINGRADO
Jorge Luis Borges [1] disse que às vezes percebia estar apenas citando,
involuntariamente, em seus escritos, trechos que havia lido em outros autores.
Por essa razão “melhor seria, talvez, que os poetas fossem anônimos.”
Os escritores podem citar sem perceber, ou
perceber posteriormente, como no exemplo de Borges. Mas há casos em que os
poetas dialogam. É quando um cria construções tão fortes que o outro digere e
reconstrói. Não é citação sem referenciamento. Não é plágio. É diálogo visceral.
E é, provavelmente, o que aconteceu no exemplo que comento. Inicio pela referência
de Drummond a Neruda em Considerações do
poema:
[...]
Uma pedra no meio do caminho
ou
apenas um rastro, não importa.
Estes
poetas são meus. De todo orgulho,
de
toda a precisão se incorporam
ao
fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua
mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que
Neruda me dê sua gravata
chamejante.
Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São
todos meus irmãos, não são jornais
nem
deslizar de lancha entre camélias:
é
toda a minha vida que joguei. [...]
Se minha hipótese estiver correta, ao
contrário do poema, foi Neruda que vestiu a gravata chamejante de Drummond. O
que certamente não é problema para o poeta mineiro, que furtava elegias de
Vinicius, bebia em Murilo, perdia-se em Apollinaire e por aí vai.
Em Influências
e impasses: Drummond e alguns contemporâneos, o crítico inglês John Gledson
escreveu sobre o poeta de Itabira, chegou inclusive a compará-lo com Neruda:
“Em muitos aspectos, é legítimo ver Drummond como o anti-Neruda, pois sua
modéstia e ceticismo se opõem diretamente à autoconfiança e ao entusiasmo do
poeta chileno.” Creio que é por aí. A comparação estabelecida mais à frente reforça
e exemplifica o argumento de Gledson.
A Batalha de Stalingrado foi umas das
mais importantes e sangrentas da Segunda Guerra Mundial. A vitória dos
soviéticos sobre os nazistas tocou fundo em poetas e artistas. No calor do
acontecimento, Neruda escreveu Canto a
Stalingrado. Posteriormente, com a vitória dos soviéticos sobre os
nazistas, o poeta chileno escreveu Novo
canto de amor a Stalingrado. Em 1945, Drummond publicou A rosa do povo, com dois poemas (Telegrama de Moscou e Carta a Stalingrado)
que, creio, Neruda leu e retomou anos depois, no Canto geral, publicado
em 1950. Eis os versos e as imagens:
TELEGRAMA
DE MOSCOU
(Drummond)
Pedra
por pedra reconstruiremos a cidade.
Casa
e mais casa se cobrirá o chão.
Rua
e mais rua o trânsito ressurgirá.
Começaremos
pela estação da estrada de ferro
e
pela usina de energia elétrica.
Outros
homens, em outras casas,
continuarão
a mesma certeza.
Sobraram
apenas algumas árvores
com
cicatrizes, como soldados.
A
neve baixou, cobrindo feridas.
O
vento varreu a dura lembrança.
Mas
o assombro, a fábula
gravam
no ar o fantasma da antiga cidade
que
penetrará o corpo da nova.
Aqui
se chamava
e
se chamará sempre Stalingrado.
-
Stalingrado: o tempo responde. [2]
CARTA
A STALINGRADO
(Drummond)
[...]
Stalingrado, quantas esperanças!
Que
flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que
felicidade brota das tuas casas!
De
umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de
outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não
há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,
todos
morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas
a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó
minha louca Stalingrado! [...]
CANTO
GERAL
(Neruda)
[...]
Stalingrado, surge a tua voz de aço,
renasce
andar por andar a esperança
como
uma habitação coletiva,
e
há um tremor de novo em marcha
ensinando,
cantando,
e
construindo.
Do
sangue surge Stalingrado
como
uma orquestra de água, pedra e ferro
e
o pão renasce nas padarias,
a
primavera nas escolas,
sobe
novos andaimes, novas árvores,
enquanto
o velho e férreo Volga palpita.
Estes
livros,
em
frescas caixas de pinho e cedro,
estão
reunidos sobre o túmulo
dos
verdugos mortos:
estes
teatros feitos nas ruínas
cobrem
martírio e resistência:
livros
claros como monumentos:
um
livro sobre cada herói,
sobre
cada milímetro de morte,
sobre
cada pétala desta glória imutável [...] [3]
Drummond: “Pedra por pedra
reconstruiremos a cidade.” Neruda: “Stalingrado, surge a tua voz de aço,
renasce andar por andar a esperança”. Drummond: “Sobraram apenas algumas
árvores com cicatrizes, como soldados.” Neruda: “o pão renasce nas padarias, a
primavera nas escolas, sobe novos andaimes, novas árvores”. Drummond: “Não há
mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas, todos
morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede.”
Neruda: “Estes livros, em frescas
caixas de pinho e cedro, estão reunidos sobre o túmulo dos verdugos mortos:
estes teatros feitos nas ruínas cobrem martírio e resistência: livros claros
como monumentos: um livro sobre cada herói, sobre cada milímetro de morte,
sobre cada pétala desta glória imutável”.
Versos recortados e colocados lado a
lado sugerem que Neruda respondeu a Drummond, como se as imagens de um tivessem
incomodado o outro. Como se a visão da cidade destruída, pintada por Drummond,
fosse retomada e retocada por Neruda. Pedra por pedra, andar por andar. Árvores
novas no lugar das árvores com cicatrizes. Nem livros nem teatros funcionando; livros
posicionados sobre os heróis, teatros construídos sobre as ruínas [4].
O escritor argentino Ernesto Sabato [5] registrou que as almas dos pintores
estão nas árvores que pintam. O mesmo vale para os poetas. Árvores com
cicatrizes, para Drummond. Árvores renascidas, para Neruda. As almas dos poetas
estão na Stalingrado que pintaram.
Neruda, no Canto geral, provavelmente dialogou com o A rosa do povo, de Drummond. Interessante pensar que a barreira dos
idiomas não impediu a comunicação poética. Saber se foi um diálogo consciente
ou não é mais difícil. Mas, se o poeta chileno retomou inconscientemente as
imagens drummondianas, é ainda mais interessante, porque atesta o quanto os
versos de Drummond marcaram Neruda, que foi além de citar trechos de terceiros
em escritos próprios, como às vezes fazia Borges, involuntariamente. Neruda não
citou, reconstruiu, alterou e colocou o próprio ser nos versos, como se as
imagens de Drummond lhe fossem tão marcantes quando incômodas.
Notas
[1]
A
confissão de Borges está em uma palestra intitulada O enigma da poesia, proferida em Harvard no final dos anos 1960. As
saborosas palestras de Borges foram reunidas no livro Esse ofício do verso.
[2]
Ao
contrário do que diz o poema, a cidade de Stalingrado teve o nome alterado. O
tempo respondeu.
[3]
O
trecho citado está na terceira parte do Canto IX. Utilizei a 10º edição do Canto geral, editada pela Bertrand
Brasil. A tradução para o português é de Paulo Mendes Campos. O trecho
original, em espanhol, é: “Stalingrado, surge tu voz de acero,/ renace piso a
piso la esperanza/ como una casa colectiva,/ y hay un temblor de nuevo en
marcha/ enseñando,/ cantando/ y construyendo./ Desde la sangre surge
Stalingrado/ como una orquesta de agua, piedra y hierro/ y el pan renace en las
panaderías,/ la primavera en las escuelas, el viento/ sube nuevos andamios,
nuevos árboles,/ mientras el viejo y férreo Volga palpita./ Estos libros,/ en
frescas cajas de pino y cedro,/ están reunidos sobre la tumba/ de los verdugos
muertos,/ estos teatros hechos en las ruínas/ cubren martirio y resistencia:/
libros claros como monumentos:/ un libro sobre cada héroe,/ sobre cada
milímetro de muerte,/ sobre cada pétalo de esta gloria inmutable.”
[4]
Há
outro possível diálogo entre os poetas que não aparece na tradução para o
português do Canto geral (na edição
que utilizei). Drummond: “O vento
varreu a dura lembrança.” Neruda: “el viento sube nuevos andamios”.
[5] Sabato, Ernesto. O escritor e seus fantasmas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
Publicado originalmente no Passa Palavra
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