MEIA LUA
Refugiamo-nos
no amor,
este
célebre sentimento,
e
o amor faltou: chovia,
ventava,
fazia frio em São Paulo.
Fazia
frio em São Paulo...
Nevava.
O
medo, com sua capa,
nos
dissimula e nos berça
(Carlos
Drummond de Andrade – O medo)
Morava há meses na praça central de São
Paulo: com as garotas de programa, os cães, os pombos, a base da polícia, as
palmeiras imperiais, as lojas, os pastores, os traficantes, os vendedores
ambulantes, o chafariz, a estação do metrô, a catedral e o marco zero da
cidade. Conhecia alguns bairros de São Paulo. Morou em outras praças e ruas.
Mas preferia a Sé. Não pelo local em si, nem pelo fluxo de pessoas, nem pelas
possibilidades comerciais. Preferia a Sé pelos companheiros que encontrou por
lá. Nunca tinha experimentado tanta camaradagem. Como era novo na região e às
vezes passava noites observando o céu, ganhou o apelido: Meia Lua.
A notícia se espalhou rápido: uma doença
estava matando as pessoas. Covid-19. Coronavírus. Pandemia. Palavras que
assustavam. Era preciso redobrar os cuidados higiênicos: lavar as mãos, não
tocar o rosto. Quem tivesse família devia retornar para casa. Diziam até que a
prefeitura criaria abrigos para a população de rua.
Meia Lua notou uma significativa
diminuição do movimento no semáforo em que vendia balas. Os poucos motoristas
que paravam se protegiam atrás dos vidros. Decidiu não incomodá-los.
Interrompeu as vendas.
O comércio fechou. As esmolas acabaram.
Os espaços culturais cancelaram as atividades. As garotas de programa deixaram
de atender. As pessoas evitavam contatos físicos. A polícia parou de expulsar
os moradores de rua da praça nas primeiras horas da manhã. A catedral
interrompeu as missas, apenas o sino continuou ecoando. Mas voluntários
mantiveram a distribuição de alimentos aos necessitados, e o porteiro de um
estacionamento morava no imóvel e deixava os ex-companheiros usarem o banheiro,
normalmente.
Quando viu pessoas circulando
mascaradas, Meia Lua achou que tivesse a ver com o frio fora de época, e comentou
com os companheiros, que se divertiram. “Ê Meia Lua! É a doença!” – disse o
Noca, rindo. Tentou se explicar, depois quis desconversar, mas não teve jeito,
virou motivo de chacota. Os companheiros se divertiam sempre que passava alguém
usando máscara. Diziam “que frio” e riam. No início, Meia Lua se irritava, mas
acostumou com os gracejos, se divertia com a alegria dos companheiros, ria com
eles.
Há tempos não recebia notícias dos
familiares. Desejava que estivessem bem. Achava estranho. De um dia para o
outro, quase sem perceber, um pouco por acaso e um pouco por descuido, perdeu o
contato com a mãe e os irmãos. Dormia na praça central da maior cidade do país
e não sabia onde encontrar os familiares. Teria algum deles voltado para o
sertão? Quando a saudade apertava, Meia Lua se posicionava próximo à saída
principal do metrô, e observava os transeuntes. Um conhecido talvez passasse
por ali. Ele pediria notícias, apresentaria os companheiros, contaria por onde
andou e o que fez. Nunca mais perderia o contato com os familiares. Meia Lua
espiava as pessoas com olhos aflitos. Comovia os companheiros. Todos sabiam o
que ele sentia. Também eles haviam passado pela mesma fase. Quem vinha morar na
praça central da cidade costumava passar horas observando as pessoas que saíam
do metrô. A cena era ainda mais triste no tempo da pandemia. As poucas pessoas
que passavam por ali usavam máscaras, como se não quisessem ser reconhecidas.
Meia Lua mirava o vazio, como um náufrago. “Ê Meia Lua! Vem pra cá!” – chamavam
os companheiros quando a cena se tornava excessivamente melancólica.
Com o avanço da pandemia, quem pôde
deixou a praça. Piauí conseguiu dinheiro com um amigo e foi para o interior. Os
mais velhos convenceram o Babão a procurar os tios. Mas alguns não tinham para
onde ir, nem queriam se afastar dos companheiros.
Era outono. O vírus percorria a cidade. O trânsito quase parou. Ouviam-se apenas as sirenes das ambulâncias. Os finais de tarde eram vermelhos. As noites eram geladas. Meia Lua observava as estrelas. Nunca tinha visto o céu de São Paulo tão estrelado. Parecia que estava num pequeno povoado do interior. Ele queria falar sobre as estrelas, queria mostrá-las aos companheiros, mas não interrompia o sono deles. Não sabia ao certo o que dizer e não tinha certeza: via estrelas ou sonhava com o sertão?
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