O IMPERIALISMO ENVERGONHADO
Às vezes vendedores me perguntam, nos
sebos e nas livrarias, se preciso de ajuda. Às vezes agradeço e digo que não é
necessário porque procuro livros que ainda não sei quais são. Com esse método
meio desgovernado já conheci obras e autores de primeira, mas às vezes falha. O
procedimento consiste em correr os olhos pelos livros enfileirados. Uma boa
capa, uma edição interessante e, principalmente, um título chamativo atraem
para a contracapa, depois para as orelhas e o sumário. Quando o circuito se
completa, é grande a chance de consumar a compra, caso o preço não seja
proibitivo.
Recentemente me deparei com um livro que
tem uma boa capa. A edição é interessante. O título é chamativo: Autoimperialismo. A contracapa informa
que, em três ensaios, o autor apresenta uma tese original e provocadora sobre o
Brasil. Fui até o sumário e li os títulos dos três ensaios que compõe o livro: Cemitério da esperança – Brasília aos 50, A
pornografia dos bandeirantes e Autoimperialismo.
Fiquei interessado. Como o preço não estava proibitivo, comprei. O ensaísta
começa por Brasília, passa por São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, para, por
fim, apresentar uma visão geral sobre o Brasil. Do autor, o estadunidense
Benjamin Moser, eu tinha ouvido falar apenas de passagem, por ter escrito a
biografia de Clarice Lispector.
A opinião de Moser sobre Brasília é
abertamente negativa: a cidade parece um “asilo gigante”, com uma arquitetura
insignificante, inovações urbanas banais e contraproducentes, os edifícios são
menores ao vivo e impressionam menos do que pela televisão, são pequenos para a
paisagem que procuram dominar e grandes demais para serem acolhedores e
confortáveis [1]. Mas mesmo assim,
Brasília é, para Moser, o monumento mais espetacular do século XX devido à
escala faraônica, à ambição artística e ao impacto político que gerou. Nenhum
outro monumento teria produzido efeitos tão paradoxais. O ensaísta afirma que
cidades brasileiras mais antigas – Olinda, Ouro Preto e Paraty – são íntimas e
confortáveis; o que não ocorre em Brasília devido à escala esmagadora e à
fantasia de ordem e progresso, que subjugam completamente o indivíduo: “é
difícil não perceber o desdém da cidade para com o povo.” Brasília teria sido,
sobretudo, uma tentativa de dar um passo à frente para se afastar do passado
sem passá-lo a limpo. Não se tratava de “acreditar que algo de bom poderia sair
da história brasileira, era o contrário: consistia em ter a esperança de que a
história do país podia ser negada”, como se fosse possível ignorar 460 anos.
Mas ocorreu o contrário. A história se repetiu e Brasília se tornou um enorme
“cemitério da esperança”. A anedota continua válida: o Brasil foi, é e para
sempre será o país do futuro. No “cinturão verde” de Brasília, que mantém os
trabalhadores distantes e obrigados viajar quase duas horas para chegar à
cidade, Moser identifica um eco da reforma urbana do Rio de Janeiro, que
demoliu cerca de 1600 edifícios forçando os moradores a ir para o morro da
Favela, tudo em nome da ordem e do progresso. O Brasil constrói a própria sua
história tentando fugir dela. Brasília foi um dos capítulos. Outro capítulo,
muito bem criticado por Moser, foi a construção do Museu do Amanhã, no Rio de
Janeiro, sobre um antigo cemitério de trabalhadores escravizados.
A opinião de Moser sobre São Paulo não é
abertamente negativa, como no caso de Brasília [2]. Para o ensaísta, enquanto a capital do país é uma cidade
monumento, a capital paulista deixa pouco espaço para os monumentos. A
arquitetura monumental de Brasília é opressiva e força o indivíduo a se adaptar
a ela, e não o contrário, como se dissesse: “você não se encaixa. Está em
perigo: preste atenção.” Para Moser, Brasília expressa a contradição da
arquitetura monumental brasileira, que tenta conjugar forma moderna com
conteúdo retrógrado, empregando a atualização arquitetônica para manter as
coisas como sempre foram. Por outro lado, a arquitetura de São Paulo força os
monumentos a se adaptarem à cidade, como se dissesse: vocês não se encaixam. Estão
em perigo: prestem atenção. Daí a
pornografia dos bandeirantes, que Moser não explicita exatamente o que é,
mas sugere ter a ver com monumentos “estranhos e ridículos”, que pretendiam
dizer uma coisa, mas que dizem outra. Como o Borba Gato, “tosco e caricaturesco”,
pasmo diante do trânsito congestionado da Avenida Santo Amaro. Ignorada pela
cidade, a estátua do bandeirante expressaria impotência, o mundo a que ela era
necessária havia desaparecido. Para o ensaísta, é como se, em São Paulo, os
monumentos tivessem sido trazidos de cidades menores e mais antigas. Segundo
Moser, para as estátuas dos bandeirantes serem notadas seria preciso remover a
cidade, porque São Paulo as tornou irrelevantes [3]. Por não ter sido construída para abrigar governantes, a capital
paulista prescindiu do ímpeto cerimonial e hierático. O que teria tornado a
própria ideia de monumento incongruente em São Paulo.
Moser inicia o terceiro e último ensaio,
Autoimperialismo, explicitando seu
próprio referencial teórico e ideológico: “uma visão de esquerda, mas não
esquerdista”, que não é revolucionária porque vê “algo de bom no nosso próprio
sistema”, além de ser incapaz de “conceber uma alternativa”. O compromisso com
a modernidade, para o ensaísta, passa “antes de mais nada” pela liberdade
individual, mas sem nunca chegar às classes sociais – acrescento. Moser vai
além e crava que “a ciência moderna decorre da liberdade intelectual do
indivíduo”, argumento difícil de sustentar num tempo em que o conhecimento
científico é controlado e produzido por e para grandes empresas monopolistas. O
ensaísta registra que estadunidenses como ele, ao escrever sobre a América
Latina, procuram ser “respeitosos”, porque não querem ser associados ao
“império do norte”. Além disso, pontua que muitos pesquisadores estadunidenses,
como ele, procuram “imaginar o sofrimento das vítimas da conquista, em especial
africanos e nativos [...] reconhecer o sofrimento sobre o qual nosso país foi
erigido era um dos mais louváveis signos da evolução da nossa sociedade.” É,
como no título desta coluna: o imperialismo envergonhado. Moser vê algo
positivo no capitalismo e não consegue sequer imaginar alternativas, mas, pelo
menos, lamenta o sofrimento das vítimas... No Brasil nem mesmo esse tipo de
lamento estaria presente.
Em Brasília, Moser teria percebido que
os brasileiros enxergam o próprio país com o olhar imperial que ele tentava
evitar. Mais que isso, a história e a retórica de Brasília seriam francamente
imperialistas. A confusão entre discursos e realidade é óbvia, é como se esta
fosse igual a aqueles, como se fosse possível tomar uma coisa pela outra, sem
mediações. É quando começa a confusão: “meus leitores brasileiros são, tanto
quanto eu, filhos de uma nação imperialista [...] Ambos os países percebiam
seus territórios como vazios à espera de conquistadores. Ambos abraçaram suas
belezas naturais apenas após essa natureza e seus primeiros habitantes terem
sido quase completamente destruídos. Ambos são filhos do imperialismo; ambos se
tornaram potências imperialistas.” A diferença seria que o imperialismo
estadunidense enfrenta ameaças externas e é dirigido para fora. Enquanto no
Brasil o ímpeto imperialista enfrenta ameaças internas e é dirigido para
dentro. Mas se o imperialismo surge quando a concentração de capital gera
grandes monopólios, como pode ser considerado imperialista um país que sequer
completou o processo de industrialização? Como pode ser considerado
imperialista um país que, como o próprio Moser reconhece, apresenta uma
“dolorosa carência de desenvolvimento econômico” e uma “vergonhosa irrelevância
geopolítica”? A resposta é simples: o ensaísta se limita a discursos,
narrativas e olhares, sempre individuais, como se fossem a realidade, além de
ignorar a luta de classes e as relações sociais de produção. Daí basta juntar o
prefixo “auto” ao substantivo “imperialismo” para oferecer uma “tese original e
provocadora sobre o Brasil”. O problema são as consequências.
Moser conclui o terceiro ensaio, Autoimperialismo, afirmando que “A
realidade do Brasil e a dos Estados Unidos eram a mesmas [...] Poderíamos ser
mais céticos diante de qualquer coisa anunciada como ‘nova’ [...] podemos
descobrir outra maneira de olhar a paisagem em que nos encontramos. Podemos
parar de enxergá-la com o olhar do negociante, do empreiteiro, do colonizador;
parar de pensar em termos de renascimento ou revolução [...] Assim, veríamos
que opor os Estados Unidos à América Latina é um erro. O alvo é evitar o olhar
do colonizador. Não importa quem olha, mas como.” É quando falar do
autoimperialismo brasileiro serve para ocultar o imperialismo estadunidense.
Para Moser, “a ideia da América Latina como vítima dos Estados Unidos é uma
caricatura, e uma que, aliás, não ajuda em nada quando o escritor se aproxima
do Brasil.” Se o imperialismo está em toda parte, não está em parte alguma. É
uma definição tão abrangente que não define nada. Além disso, mudar o olhar não
muda a realidade. É o contrário. Para mudar o olhar é preciso mudar a
realidade. Para evitar o olhar do negociante, do empreiteiro e do colonizador,
é preciso construir um mundo sem negociantes, empreiteiros e colonizadores. Mas
aí seria demais para o ensaísta, que é incapaz de conceber alternativas e quer,
no máximo e como se fosse possível, mudar indivíduos sem mudar as relações sociais
de produção.
No ensaio A pornografia dos bandeirantes, Benjamin Moser trata a arquitetura
de Oscar Niemeyer como forma progressista posta a serviço de um regime
reacionário. Não sei se a definição vale para Niemeyer e tenho dificuldade para
conceber forma progressista sem conteúdo progressista. Mas, com o acréscimo de
um advérbio, a fórmula é útil para definir os três ensaios do próprio Moser:
forma supostamente progressista posta a serviço de um regime reacionário.
Notas
[1]
Registrei
a minha impressão sobre Brasília e
as cidades próximas em Plano Piloto e Ceilândia.
[2]
Registrei
a minha impressão sobre São Paulo em Lamento paulistano,
São
Paulo não pode parar, Contingência do
paulistano e São Paulo:
a capital do pixo.
[3] Vale destacar que o ensaio A pornografia dos bandeirantes, de Benjamin Moser, é anterior à ação que tocou fogo na estátua do Borba Gato.
Publicado originalmente no Passa Palavra
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