AINDA AQUELA PEDRA
Na Rússia há longas extensões em que se vê
apenas neve, de trem é possível percorrer centenas de quilômetros sem ver
absolutamente nada que não seja neve. É a brancura do vazio, ou as “impurezas
do branco” – para usar uma expressão de Carlos Drummond de Andrade. Naquelas
terras brancas é uma enorme alegria quando se avista algo que não seja neve.
Forçado a sair da Rússia, Trotsky cruzou as longas terras brancas num trem, foi
quando entendeu por que na região havia povos que cultuavam e veneravam pedras:
ao longo de centenas de quilômetros, quando muito, se vê uma pedra no meio da
neve.1,2 Fico pensando como seria a reação daqueles povos se lessem No meio do caminho, ou Poema da pedra, que é como ficou
conhecido (o apelido é sintomático, atesta a popularidade alcançada):
No meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no
meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho
tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei
desse acontecimento
na vida de minhas
retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei
que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no
meio do caminho
no meio do caminho
tinha uma pedra.
É intrigante imaginar a impressão que o
poema causaria num russo das terras brancas. O sujeito jamais se esqueceria
daquele acontecimento na vida de suas retinas tão fatigadas, ou, talvez,
congeladas. Por outro lado, se nas terras brancas da Rússia o poema soaria como
sagrado, nas terras tropicais do Brasil o poema causou escândalo: era uma
profanação das sagradas tradições da poesia, da língua de Camões e da inteligência
nacional. “Erro crasso de português”3: trocou havia por tinha...
Elogio da feiura... Retorno à idade da pedra...
Nas terras brancas da Rússia quase não há
pedras no meio do caminho, pelo menos no sentido topográfico, por lá o poema
ganharia ares de revelação. No Brasil há infinitas pedras no meio do caminho,
em todos os sentidos, e o poema expressa cansaço e tédio. Numa entrevista
concedida em 1954, Drummond afirma e pergunta: “É chateação o que estava
sentindo. Queria dar a sensação de monotonia, não sentiu essa sensação?” 4
É uma vereda que permite percorrer o poema, mas certamente não é a única,
porque, como notou Camus5, as grandes obras e os sentimentos
profundos sempre expressam mais do que têm consciência. É por isso que os
grandes escritores não só refletem, mas expandem o real. Depois de Drummond,
“chateação” e “monotonia” viraram pedras no meio do caminho.
No meio do caminho é uma pedra no meio
do caminho da poesia brasileira, provocou reações apaixonadas a favor e contra.
Aquela pedra passou a compor o ecossistema da língua portuguesa. Drummond: “sou
o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928
vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as
pessoas em duas categorias mentais.”6
Escrito no meio da década de 1920, No meio do caminho foi publicado pela
primeira vez em 1928, na capa Revista de
Antropofagia7, mostrando que Alcântara Machado, Raul Bopp e
outros modernistas perceberam imediatamente a força do poema. Em 1930, No meio do caminho foi republicado no
primeiro livro de Drummond, Alguma Poesia,
que um crítico8 definiu como um título inexato, já que não havia ali
nenhuma poesia.
No meio da década de 1930, Drummond se
tornou chefe de gabinete do Ministério da Educação, foi quando apanharam a
pedra do poema para atirar no poeta. Como podia ocupar cargo tão importante o
maluco que escreveu o Poema da pedra?
Era como se Drummond fosse uma pedra no meio do caminho. E não pararam nem na
pedra nem no meio do caminho. Como podia ocupar cargo tão importante um sujeito
que escreveu “Oh! Sejamos pornográficos (docemente pornográficos)”?9 Constatação:
o moralismo não é novidade.
Drummond recolheu, guardou e organizou
comentários e críticas ao Poema da pedra.
Em 1967, publicou Uma pedra no meio
do caminho – biografia de um poema. Os títulos de algumas seções do livro
dão ideia da celeuma causada pelo poema: “Reação pelo ridículo”, “Muita gente
irritada”, “Crítica pessoal”, “Das incompreensões”, “Popularidade, mesmo
negativa”. Vingança sublime: o tempo. Drummond reuniu e publicou todo material
que recolheu, inclusive trocas de autoria (houve quem dissesse que o No meio do caminho era de Manuel
Bandeira). Uma pedra no meio do caminho –
biografia de um poema é um golpe de aikido, usa a força dos críticos contra
os próprios. Leitura saborosa. Alguns trechos:
- Mário de Andrade (1925): “O ‘No meio do
caminho’ é formidável. É o mais forte exemplo que conheço, mais bem frisado,
mais psicológico de cansaço intelectual.”
- Mário de Andrade (1926): “Acho isto
formidável. Me irrita e me ilumina. É símbolo.”
- Alcântara Machado: (1928): “Mas estupenda
mesmo é a pedra que está no meio do caminho. Vamos sentar nela?”
- Murilo Mendes (1930): “No meio do caminho é o tipo de poema no
meio da cabeça da gente. Nunca me esquecerei. Não sai.”
- Moacir Andrade (1934): “O Sr. Carlos
Drummond de Andrade não tem necessidade de ingerir uma droga violenta para
sutilizar-se. O esforço dele é no sentido de inventar outra droga que o torne visível.
Ainda não conseguiu.”
- Goudin da Fonseca (1938): “O Sr. Carlos
Drummond é difícil. Por mais que esprema o cérebro, não sai nada. Vê uma pedra
no meio do caminho e fica repetindo a coisa feito papagaio [...] E não houve
uma alma caridosa que pegasse nessa pedra e lhe esborrachasse o crânio com
ela!”
- Oswaldo Orico (1939): “em matéria de
poesia, longe de avançarmos, voltamos à idade da pedra.”
- Pedro Vergara (1943): “Aquele ‘tinha uma
pedra’ é a coisa mais desesperadamente humana e angustiada que se possa
imaginar; deve-se dizer mesmo que poucos poetas, em nosso país, terão
conseguido fisgar, como ele, a simplicidade, por uma forma tão direta e tão à
flor da pele.”
- Agripino Grieco (1944): “Em poesia, não
faz Drummond outra coisa senão atrapalhar as autoridades, como quando nos
aconselha a sermos pornográficos, ele que trabalha numa repartição
frequentadíssima por mestres e estudantes, ou quando se insurge contra a pedra
no caminho, sugerindo que as estradas de Itabira ou do Rio são mal calçadas,
para desgosto de duas prefeituras.”
- Oscar Queiroz (1948): “pretende
desmoralizar e anular as nossas sagradas tradições artísticas, o que me parece
caso de cadeia, porque não é justo nem admissível a impunidade de tão
monstruosos crimes!”
- José Condé (1952): “Por causa daquela
‘pedra no meio do caminho’ recebeu ele telefonemas, desaforos e até ameaças...
Houve quem lhe sugerisse prender a tal pedra no pescoço e atirar-se ao mar.”
No meio do caminho é composto por dez
versos circulares, que giram em volta das retinas fatigadas do poeta, como se
uma pedra orbitasse por ali. Se repetem os versos 1, 4 e 10; 2 e 9; 3 e 8. Como
o antepenúltimo repete o terceiro, e o penúltimo é igual ao segundo, e o último
repete o primeiro: o poema gira em círculos, aumentando a sensação de cansaço.
São sessenta e uma palavras: “tinha”, “uma”, “pedra” aparecem sete vezes; “no”,
“meio”, “do”, “caminho” aprecem seis vezes; “nunca”, “me”, “esquecerei”
aparecem duas vezes; apenas dez palavras não se repetem. A repetição dos versos
e das palavras reforça a sensação de cansaço.
Dizem que os amigos riam quando Kafka lia
seus textos. Desconfio que os modernistas riram enquanto liam No meio do caminho. É, talvez, o que
explica o comentário de Alcântara Machado10, que queria sentar na
pedra e era editor da Revista de
Antropofagia, que publicou o poema na primeira página. Já os adoradores das
sagradas tradições da poesia não riram, mas fizeram rir. É o que dá levar
absolutamente a sério o que não é sério.
Antes de conhecer a entrevista citada
acima, parecia-me que Drummond escreveu No
meio do caminho para irritar os leitores, como se quisesse transferir a
irritação que sentia para se divertir com a irritação dos outros. Sabendo que o
poeta escreveu por chateação e para passar a sensação de monotonia, minha
interpretação inicial cai parcialmente: não era uma brincadeira, mas provocou,
irritou e divertiu.
Curiosamente, o comentário que mais
me espantou não está em Uma pedra no meio
do caminho – biografia de um poema. Na primeira vez que estive no museu
Casa de Drummond, em Itabira, o vigia me contou que entre aquele sobrado e o
grupo escolar frequentado pelo poeta havia uma pedra: “no meio da rua tinha uma
pedra.” Uma pedra no meio de uma rua de uma “cidadezinha qualquer”11
teria provocado tamanha celeuma? Fato é que, se a tal pedra realmente existiu,
as análises mirabolantes se tornam ainda mais engraçadas. Seria só uma pedra
qualquer no meio de uma rua qualquer de uma “cidadezinha qualquer”... Considerando que Drummond não era um
aluno dos mais aplicados, uma pedra no meio da rua poderia ser uma boa desculpa
para matar aula. A hipótese do vigia era tão atraente que passei a ver a tal
pedra entre a casa do poeta e o grupo escolar, no meio da Rua Major Laje, em
Itabira, Minas Gerais, na altura do número 300. Era como se a pedra estivesse
lá desde tempos imemoriais. Infelizmente, quando voltei a Itabira não
reencontrei o vigia, e constatei que não havia nenhuma pedra no meio da rua, o
que não significa que ela não tenha estado ali nas primeiras décadas do século
XX, afinal, se havia “noventa por cento de ferro nas calçadas”, por que não
haveria nas ruas? Seja como for, lembro de ter perguntado se o vigia tinha
noção da transcendentalidade da hipótese da “pedra no meio da rua”. Ele sorriu.
E eu desconfio que levei absolutamente a sério o que não era sério...
A tal pedra entre a casa do poeta e o grupo
escolar provavelmente foi uma criação do vigia para suportar a chateação e a
monotonia do trabalho. Drummond publicou Uma
pedra no meio do caminho – biografia de um poema para se divertir com a
ingenuidade dos críticos. O vigia provavelmente inventou aquela pedra para se
divertir com a ingenuidade dos que visitam o museu. Mas, por outro lado, ainda
que a pedra do vigia seja só um gracejo, é verdade que havia muitas pedras no
meio dos caminhos itabiranos. Itabira, por sinal e na versão mais aceita, é uma
palavra de origem tupi que significa pedra que brilha. Ou, como completa
Drummond na lateral esquerda de Pedra
natal: “pedra luzente/ pedra empinada/ pedra pontuada/ pedra falante/ pedra
pesante por toda vida”.
Da sacada do sobrado em que vivia o menino
Carlos Drummond de Andrade, no começo do século XX, e de diversos pontos de
Itabira, se via o pico do Cauê: a pedra “luzente, empinada e pontuda” que se
destacava no horizonte; a pedra que, “toda de ferro”, fascinava o menino. O
sobrado da família Andrade virou o museu Casa de Drummond, onde trabalhava o
vigia da pedra, cento e dez anos depois do nascimento do poeta. O pico do Cauê
já tinha virado pó.
A primeira referência de Drummond ao pico
aparece no poema Itabira, presente em
Alguma poesia (1930):
Cada um de nós tem
seu pedaço no pico do Cauê
Na cidade toda de
ferro
as ferraduras batem
como sinos.
Os meninos seguem
para a escola.
Os homens olham
para o chão.
Os ingleses compram
a mina.
Só, na porta da
venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.
Tutu Caramujo12 na porta da
venda me faz pensar no vigia na porta do museu Casa de Drummond. O primeiro
anunciando a “derrota incomparável”. O segundo se divertindo com a ingenuidade
dos visitantes. No tempo de Tutu Caramujo, estrangeiros compravam terras a
preço de banana, itabiranos vendiam lebre por gato. Desenhava-se a “derrota
incomparável”. Havia minério de ferro no meio das pedras. No tempo do vigia,
turistas visitavam a Casa de Drummond, de onde já não se via o pico do Cauê,
que havia sido britado “em bilhões de lascas”. Como a “derrota incomparável”
era fato consumado, só restava rir. O vigia zombeteiro é o Tutu Caramujo do
século XXI.
Drummond se define como um “eu todo
retorcido”. Itabira virou uma cidade toda retorcida. A mineração recortou
serras e aplainou morros. José Miguel Wisnik esteve na cidade para um festival
de inverno, foi quando notou a presença marcante da mineração na obra
drummondiana, e escreveu Maquinação do
mundo – Drummond e a mineração. Wisnik: “o impacto do lugar faz ler e reler
a poesia de Drummond de uma perspectiva diferente daquela a que estamos
acostumados. Fui à cidade portando o universo itabirano que encontro nos
poemas, e me deparei com a conformação trágica desse lugar corroído, cifra
esquisita da negatividade da própria obra, realimentando o fermento interno ao
texto, que o leva a crescer sempre mais” [...] “há no ar a sensação de que um
crime não nomeado, ligado à fatalidade de um ‘destino mineral’, foi cometido a
céu aberto.”
Exemplos para dar materialidade à “sensação de que um crime não nomeado
foi cometido a céu aberto”: a) "Este câncer que atingiu a nossa cidade vai deixar três
enormes crateras na superfície de suas terras, as águas podres e ácidas, o
clima aleatório e fétido, e alguns milhares de indivíduos tentando reviver o
que poderíamos chamar de Prostituta do Capitalismo Selvagem."13 b)
Itabira é uma cidade cercada por depósitos de rejeitos com volumes que,
somados, são 33 vezes maiores do que a barragem da Vale que se rompeu em
Brumadinho.14 c) A fazenda do Pontal – que pertenceu à família
Andrade – foi transformada em depósito de rejeitos da Companhia Vale do Rio do
Doce; a sede da propriedade foi desmontada e remontada pela Companhia, e virou
museu. Se, como quer Milan Kundera, o kitsch é “a negação absoluta da merda”, o
museu Fazenda do Pontal é absolutamente kitsch. Há uma personagem de Kundera
que combate o kitsch, mas como o ideal estético na Tchecoslováquia era o
realismo socialista e, por tabela, o kitsch, Sabina precisava driblar a
censura, não podia pintar exatamente como queria. Ela explica o significado de
seus quadros da seguinte forma: “na frente, a mentira inteligível; por trás, a
verdade incompreensível.”15 Como os olhares focam a frente, a
verdade se insinua por trás, driblando a censura. A sede da fazenda do Pontal
remontada – pela Vale – é exatamente a mesma em que cresceu o menino Carlos
Drummond de Andrade, mas quem espia pelas janelas vê o depósito de rejeitos que
cobriu a propriedade original: na frente, a mentira necessária; por trás, a
verdade inconfessável.16, 17
No poema América,
uma rua começa em Itabira e vai dar em qualquer lugar da Terra. Na primeira
metade do século XX, ruas de muitas partes da Terra deram em Itabira. Tudo em
nome do minério de ferro, matéria-prima fundamental para a indústria
capitalista. Foi quando Tutu Caramujo previu a “derrota incomparável”. Alguns,
os ingênuos, pensaram que faziam ótimos negócios vendendo terras, não
perceberam que trocavam lebre por gato. As primeiras mineradoras eram
estrangeiras e houve intensa disputa para garantir o controle nacional sobre o
recurso estratégico. Quando veio a Segunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas
negociou a criação da Companhia Vale do Rio Doce, que seria nacional, mas se
comprometia a alimentar a indústria bélica dos aliados (principalmente EUA e
Inglaterra). Wisnik: “o ‘sono rancoroso dos minérios’ será acordado para ir à
guerra em 1942”. A transformação foi tamanha que a cidade de Itabira chegou a
se chamar Getúlio Vargas. Rubem Braga sugeriu que Drummond alterasse os últimos
versos de Confidência do itabirano para:
“Getúlio Vargas é só uma foto na parede.”18
Com a criação da Companhia Vale do Rio Doce
cresceu a exploração e a destruição de Itabira. Drummmond combateu a Vale com
“palavras, intuições, símbolos e outras armas”. Em 1970, a empresa respondeu
com uma campanha publicitária em que afirmava “Há uma pedra no caminho do
desenvolvimento brasileiro”, embaixo da frase havia uma pedra. A referência ao
poeta é inequívoca, a peça publicitária registra: “Nosso caminho sempre esteve
cheio de pedras. Mas essa tem um significado todo particular. Com ela,
alcançamos esta semana a marca de 20 milhões de toneladas de minério de ferro
exportadas. Mais 2,5 milhões que todo o ano passado” [...] “Somos especialistas
em transformar pedras em lucros para a nação. É de mais pedras como essa que o
Brasil precisa.” A página de jornal com o anúncio foi guardada por Drummond.
Em 1983, no jornal O cometa itabirano, Drummond publicou Lira itabirana, poema que fala de sua cidade natal, mas parece
antecipar crimes que seriam cometidos posteriormente (a destruição do Distrito
de Bento Rodrigues e do Rio Doce pela Samarco, empresa controlada pela BHP
Billiton e pela Vale S.A.19; e a destruição de Brumadinho e do Rio
Paraopeba pela mesma Vale S.A.):
I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
Em 1948, o poeta retornou a Itabira para visitar a mãe, que
estava gravemente doente, foi a penúltima vez que esteve na cidade. A
profanação dos morros e rios crescia, e certamente não passou despercebida.
Itabira era e não era apenas uma foto na parede. O poeta não retornou
fisicamente à cidade, mas Drummond jamais se distanciou de Itabira, como se a
cidade fosse uma foto viva, dentro dele. O melhor exemplo são os poemas que
remetem à infância e foram escritos, em geral, quando o poeta já havia passado
dos sessenta anos. Tais poemas estão agrupados nas séries Boitempo, alguns
foram expostos em placas de ferro nos locais de Itabira a que se referem,
formando o Museu de Território Caminhos Drummondianos20. Enquanto
lembranças brotavam, a mineradora destruía a cidade: a Vale perfurava o pico do
Cauê como um dentista perfura um dente cariado. Drummond sabia que suas
lembranças eram apenas fotografias na parede da memória. Em A montanha pulverizada, o poeta se imagina
voltando à casa em que morou, subindo as escadas e espiando o horizonte:
Chego à sacada e vejo minha serra,
a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.
Era coisa dos índios e a tomamos
para enfeitar e presidir a vida
neste vale soturno onde a riqueza
maior é sua vista e contemplá-la.
De longe nos revela o perfil grave.
A cada volta de caminho aponta
uma forma de ser, em ferro, eterna,
e sopra eternidade na infância.
Esta manhã acordo e
não a encontro.
Britada em bilhões de lascas
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões
no trem-monstro de 5 locomotivas
– o trem maior do mundo, tomem nota
–
foge minha serra, vai
deixando no meu corpo e na paisagem
mísero pó de ferro, e este não
passa.
A partir do poema acima e parafraseando Mário Quintana, é
possível dizer que não importa que a tenham demolido, a gente continua morando
na cidade em que nasceu. A montanha
pulverizada prova que Drummond nunca saiu de Itabira, assim como a cidade
nunca saiu dele. Por uma ironia do destino, A
montanha pulverizada não pode compor o Museu de Território Caminhos
Drummondianos, porque a montanha virou pó e a placa de ferro precisaria levitar
no horizonte, como um quadro sem moldura, fixado no ar, sobre um imenso buraco.
Parênteses inevitáveis: a serra era dos índios, os Andrades a tomaram...
Drummond sendo Drummond: tocar fogo em tudo, inclusive em si próprio e na
própria família.
O tema mineração foi retomado em O maior trem do mundo, publicado em 1984, no jornal O cometa itabirano. Drummond resiste.
Era como se cada pedra arrancada da cidade fosse um osso arrancado do poeta,
que lutou como um javali.
O maior trem do mundo
leva minha terra
para a Alemanha
leva minha terra
para o Canadá
leva minha terra
para o Japão.
O maior trem do mundo
puxado por cinco locomotivas a óleo
diesel
engatadas geminadas desembestadas
leva meu tempo, minha infância,
minha vida
triturada em 163 vagões de minério e
destruição.
O maior trem do mundo
transporta a coisa mínima do mundo,
meu coração itabirano.
Lá vai o trem maior do mundo
vai serpenteando vai sumindo
e um dia, eu sei, não voltará
pois nem terra nem coração existem
mais.
Água escorre das pedras cortadas e arrancadas do meio do
caminho para a passagem do “maior trem do mundo”, que leva o “coração
itabirano”. Os eucaliptos nos morros denunciam a presença de interesses
mercantis. As explosões das mineradoras calaram os sinos das igrejas. Drummond
era vizinho da Igreja do Rosário, como notou Wisnik, é, talvez, o que explica a
presença marcante dos sinos na obra do poeta. A Igreja do Rosário desmoronou em
1970, provavelmente devido às explosões da Vale. Virou esgoto o riacho onde o
menino Carlos tomava banho e sonhava apalpar “irreveladas” formas femininas
(desconfio que a Água Santa só não foi totalmente canalizada porque o poeta
dedicou-lhe o poema O banho, e o
local passou a compor o Museu de Território Caminhos Drummondianos, seria
terrível colocar uma placa de ferro com os versos sobre um riacho enterrado).
Enfim, realizou-se a profecia de Tutu Caramujo: confirmou-se a “derrota
incomparável”.
O grande símbolo da “derrota incomparável” é certamente o
pico do Cauê, que o menino Carlos avistava da sacada, e desapareceu como o
“Coqueiro de Batistinha”: “De manhã cedo, pois cedo/ começa o rodar mineiro,/
passando por lá não vejo/ nem retrato de coqueiro./ A Prefeitura cortou?/ Ou o
raio o siderou,/ o caterpilar levou?”. O pico do Cauê – pedra brilhante que
atingia 1300 metros de altitude, “britada em bilhões de lascas”, “a TNT
aplainado” – virou um imenso buraco21. Wisnik: “o fim do pico é o
fim da picada”. O assassinato do pico do Cauê é um crime comparável aos
assassinatos dos rios Doce e Paraopeba.
Por fim aquela pedra. Voltemos àquela
pedra. Ainda aquela pedra. Se reescrevesse No
meio do caminho depois da destruição do pico do Cauê, o poeta talvez
registrasse: no meio do caminho tinha um buraco/ tinha um buraco no meio do
caminho/ tinha um buraco... Lido nas terras brancas da Rússia, onde é preciso
percorrer centenas de quilômetros para se avistar uma pedra no meio da neve, No meio do caminho ganharia ares de
revelação. Lido depois do assassinato do pico do Cauê, o poema também ganha
ares revelação. Tinha uma pedra no meio do caminho, não tem mais. É uma
pergunta possível, não é a solução retrospectiva, mas e se a pedra do poema
fosse o pico do Cauê? E se aquela pedra conjugada no passado fosse uma denúncia
para o futuro? Aquele “tinha”. Aquele “acontecimento” gravado em “retinas tão
fatigadas”. Aquela pedra no horizonte. A pedra extraída. A pedra transformada
em um imenso buraco. Drummond anunciando a “derrota incomparável”, como Tutu
Caramujo. E se aquela pedra fosse o pico do Cauê? E se o pico do Cauê fosse
aquela pedra?
NOTAS:
1. Sugestão: para
não prejudicar a fluência, as notas podem ser lidas depois do texto.
2. A reflexão sobre
Trotsky, a neve e os povos que cultuam pedras está no romance O homem que amava os cachorros, de
Leonardo Padura.
3. “Erro crasso” de
avaliação: para a Folha da Manhã No meio
do caminho não passava de um “erro crasso” de português. Citado em Uma pedra no meio do caminho – biografia de
um poema.
4. O poeta revela
que o Poema da pedra tem a ver com
“chateação” e “monotonia” em entrevista a Amélia Carmen Machado: Conversa com Carlos Drummond de Andrade,
Diário de Minas, 1954. Entrevista citada na apresentação de Uma pedra no meio do caminho – biografia de
um poema.
5. Albert Camus (O mito de Sísifo): “Como as grandes
obras, os sentimentos profundos sempre significam mais do que têm consciência
de dizer”.
6. Ao definir No meio do caminho como um poema
insignificante em si, mas que apesar disso dividiu o país em duas categorias
mentais, Drummond sugere que se levou demasiadamente a sério o que não era
sério. Emendo: daí a graça de ler as críticas ao poema anos depois. O poeta
provavelmente previa o efeito cômico. Foi sua vingança sublime. A citação sobre
as “duas categorias mentais” está em Uma
pedra no meio do caminho – biografia de um poema.
7. Capa da Revista de Antropofagia, julho de 1928,
primeira publicação do Poema da pedra.
8. O crítico que
sugeriu não haver nenhuma poesia em Alguma
poesia é Medeiros de Albuquerque, que escreveu no Jornal do Comércio em junho de 1930. Moral da história: sacadas e
jogos de palavras aparentemente inteligentes podem virar pedras na vidraça dos
autores. Albuquerque é citado em Uma
pedra no meio do caminho – biografia de um poema. Golpe de aikido
drummondiano.
9. Os versos “Oh!
Sejamos pornográficos/ (docemente pornográficos)” abrem o poema Em face dos últimos acontecimentos,
publicado em Brejo das Almas (1934).
Foi Agripino Grieco quem sugeriu que não poderia ser chefe de gabinete alguém
que escreve “Oh! Sejamos pornográficos/ (docemente pornográficos)”. O Jornal, 1944. A crítica é parecida com
a dos que, décadas de depois, atacam exposições de arte: em uns e outros a
moral cristã a ensinar que a carne não vale. Moralismo é, em geral, pregar uma
moral que não é seguida por seus defensores. Grieco é citado em Uma pedra no meio do caminho – biografia de
um poema.
10. É,
provavelmente, de Alcântara Machado a sacada de publicar No meio do caminho na capa da
Revista de Antropofagia. O escritor é citado em Uma pedra no meio do caminho – biografia de um poema.
11. Cidadezinha qualquer é o poema em que
tudo vai devagar e a vida é besta, é, em boa medida, Itabira das primeiras
décadas do século XX: com alguns poucos milhares de habitantes que iam devagar,
como os cães, os burros e o tempo. Itabira era só mais uma cidadezinha do
interior do Brasil. Tudo se alterou com a descoberta de riquezas minerais. Homens,
mulheres e empresas multinacionais correram para a cidade, que acelerou. Vale
lembrar e completar: aceleração e crescimento dominados pelas mineradoras, que
destruíram serras e picos. O poeta preferiu evitar a visão dos morros e rios
profanados, Itabira tornou-se “apenas uma foto na parede”, mas como doía. No meio do caminho causou um rebuliço
nacional. Confidência do Itabirano causou
um rebuliço na cidade natal do poeta, por lá ainda há os que desconfiam de
Drummond devido a tal “fotografia na parede”: “Tive ouro, tive gado, tive
fazendas./ Hoje sou funcionário público./ Itabira é apenas uma fotografia na
parede./ Mas como dói”. Curiosamente – aos 30 anos, pouco tempo depois de ter
deixado a cidade e antes de ser um poeta reconhecido –, Drummond, na crônica
Vila de Utopia, explicita seu amor pela cidade natal: "Todos cantam sua
terra, mas eu não quis cantar a minha. Preferi dizer palavras que não são de
louvor mas que traem a silenciosa estima do indivíduo, no fundo, eternamente
municipal e infenso à grande comunhão urbana. Ainda assim fui itabirano, gente
que quase não fala bem de sua terra, embora proíba expressamente aos outros
falarem mal dela. Maneira indireta e disfarçada de querer bem, legítima como
todas as maneiras." Desconfio que Drummond evitou visitar Itabira porque
amava a cidade que conheceu antes de ser retorcida pelas mineradoras.
12. Além de
comerciante, Tutu Caramujo foi prefeito de Itabira. Politicamente era
adversário dos Andrades. Tutu Caramujo era monarquista. Os Andrades eram republicanos.
13. Texto escrito
em 1980 por Fernando Duarte Gonçalves para o jornal O cometa itabirano: Itabira,
a prostituta do capitalismo selvagem. Disponível em: http://www.viladeutopia.com.br/itabira-a-prostituta-do-capitalismo-selvagem/
|
14. A matéria sobre
os depósitos de rejeito que cercam Itabira foi escrita para a BBC Brasil por
Rafael Barifouse. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47220855
15. A citação sobre
o kitsch e a personagem Sabina estão no romance A insustentável leveza do ser. Kundera dá dimensão existencial ao
kitsch, por este atalho curto, chega na frente. Reflexões sobre o kitsch podem
ser encontradas em outros romances e ensaios de Milan Kundera, por exemplo: O livro do riso e do esquecimento e A arte do romance.
16. A fazenda do
Pontal é, provavelmente, o cenário do poema Infância,
que é o segundo de Alguma Poesia
(1930). Drummond conclui assim: “E eu não sabia que minha história/ era mais
bonita que a de Robinson Crusoé.” Acrescento: e não sabia que o “mato sem-fim
da fazenda” seria coberto por rejeitos da mineração.
17. Primeira foto:
depósito de rejeitos visto pela janela do museu Fazenda do Pontal (2019).
Segunda foto: na frente o palco, atrás os morros recortados de Itabira (2018).
18. Quando Itabira
passou a se chamar Getúlio Vargas, Rubem Braga sugeriu que Drummond alterasse o
nome da cidade nos últimos versos de Confidência
do itabirano. Ficaria: “Getúlio Vargas é só uma foto na parede.” Anedota
relatada em Maquinação do mundo – Drummond
e a mineração, de José Miguel Wisnik.
19. Sacada de José
Miguel Wisnik: com a privatização, a Vale primeiro retirou o Rio Doce do nome,
depois o matou.
20. Exemplo de
placa do Museu de Território Caminhos Drummondianos. Poema O criador, publicado em Boitempo I (1968). A referência é a José,
irmão de Drummond que teria inspirado também o famoso poema de mesmo nome. No
hotel central de Itabira é possível ver uma foto do início do século XX, o
“subversivo” José aparece sem camisa (ser fotografado sem camisa era um ato
subversivo no começo do século passado). Placa de ferro localizada ao lado do
museu Casa de Drummond, a referência é ao jardim da propriedade:
21. Pico do Cauê
antes e depois da chegada da Vale do Rio Doce. Na primeira foto a vista da rua
em que morou o menino Carlos, a tal rua em que havia uma pedra, segundo o vigia
do museu Casa de Drummond. Na segunda foto o pico transformado um imenso buraco.
https://www.flickr.com/photos/achmg/5033334357 |
http://marianaviva.blogspot.com/2011/ |
(Texto publicado
originalmente no Passa Palavra)
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