ISMÁLIAS
Há
livros que conquistam pelo título, à primeira vista. Às vezes o encanto se
perde com a leitura, como se o título tivesse sido um golpe de sorte. Às vezes
o encanto cresce com a leitura, como se o título fosse inseparável do texto. É
o caso do romance O resto é silêncio,
de Erico Verissimo [1], apesar do
autor achar que faltou “carga emocional” na história. Logo no início do
prefácio o romancista informa que, num anoitecer de outono de 1941, conversava
com um amigo na Praça Senador Florêncio, no centro de Porto Alegre, quando viu
precipitar-se de um edifício uma coisa com forma humana. Correu em direção ao
objeto caído e encontrou morta uma rapariga
loura, alva e franzina [2]. Suicídio? Provavelmente. Mas o texto
não permite que se chegue a conclusões definitivas. No romance o corpo é de
Joana Karewska. Não sei se era o nome verdadeiro da mulher que morreu naquele
anoitecer de outono. Mas o fato é que, a partir da morte dela, o romancista
criou aproximadamente duas dezenas de personagens e os entrelaçou no espaço
(Porto Alegre) e no tempo (uma sexta-feira da paixão e um sábado de aleluia).
Para visualizar a ação e o cenário, Erico Verissimo chegava a construir
maquetes enquanto escrevia romances. Não sei se o romancista construiu uma
maquete quando escreveu O resto é
silêncio. Mas a sensação é de que ele observava a cidade e os personagens
por cima e ao mesmo tempo, como se fosse um deus no céu de Porto Alegre, que é
o mais belo do mundo [3].
Queria
subir ao céu. Queria descer ao mar. Banhou-se no luar. Subiu
na torre, pôs-se a cantar. Subiu na torre, pôs-se a sonhar. Enlouqueceu?
Fugiu com um anjo? Pulou na água? Numa cidade distante do litoral, o poeta
Alphonsus Guimarães imagina Ismália na torre, entre o céu e o mar. Seria ela a
musa dele? A prima que morreu jovem? Seja como for, também vejo Ismália no topo
da torre: dançando entre a lua do céu e a lua do mar.
Queriam
amar no céu. Queriam amar no mar. O amor era sub-reptício e clandestino,
ilícito e perigoso, proibido e urgente, vedado e ardente. Naquela cidade
distante do mar, o amor urgia: as bocas salgadas pela maresia.
Naquela cidade sem luar, o amor era impreterível: levantavam as saias e se
enluaravam de felicidade. Uma andava tonta, grávida de lua, e outra andava nua,
ávida de mar. Mas ouviam risadas. Foram ficando marcadas. Resolveram
fugir pelo rio. Foram correnteza abaixo. Rolando no leito. Engolindo água.
Boiando com as algas. Arrastando folhas. Carregando flores. Se desmanchando.
Foram virando peixes, virando conchas, virando seixos, virando areia, prateada
areia, com lua cheia e à beira-mar.
Chico
Buarque teria composto a canção Mar e Lua, citada acima, a partir de uma crônica de jornal que narra
o suicídio de duas amantes, no interior do país. Qual crônica? Baseada em fatos
reais? Teriam se lançado nas águas porque o amor lhes era proibido? Quem eram?
Onde foi? Não encontrei. Além da crônica, teria o compositor se referido também
ao poema de Alphonsus Guimarães [4]?
Ou, questão paralela, será que Ismália amava outra mulher, como na canção? Será
que o poeta Alphonsus Guimarães amava Ismália, que amava outra mulher? Mais ou
menos como no poema Quadrilha, de
Drummond?
Na
canção Paratodos, Chico Buarque diz
ter visto moças feito passarinho, avoando
de edifícios. Quando ouço o verso lembro de Joana Karewska, mas também de
Ismália e das amantes da canção Mar e Lua.
Alguém pode pensar nelas como ingênuas que morreram por amor [5], mas é mais que isso. O poeta Souzalopes
registrou que os suicidas não morrem de
amor pela morte, eles buscam a v-ida ao contrário. É o que chama a atenção
em Joana Karewska, em Ismália e nas amantes da canção Mar e Lua. Elas buscaram a
v-ida ao contrário: o resto é
silêncio.
Notas
[1] O
resto é silêncio (the rest is silence) é também a última frase de Hamlet na
tragédia de Shakespeare.
[2] Optei por
substituir as aspas por itálico para deixar o texto mais leve, sempre
identificando de quem são as palavras.
[3]
No romance O resto é silêncio, é o
desembargador aposentado Ximeno Lustosa quem acha o céu de Porto Alegre o mais
belo do mundo. O céu de Porto Alegre também encantou homens como o poeta Mario
Quintana.
[4] No
poema de Alphonsus Guimarães, Ismália queria a lua do céu, queria a lua do mar. Quanto às amantes da
canção do Chico, uma andava tonta,
grávida de lua, e outra andava nua, ávida de mar. Ismália banhou-se toda em luar. As amantes se enluaravam de felicidade. O corpo de
Ismália desceu ao mar. Os corpos das
amantes foram virando conchas, virando
seixos, virando areia, prateada areia, com lua cheia e à beira-mar.
[5] No romance O resto é silêncio a maioria dos personagens enxerga Joana Karewska como uma ingênua que morreu por amor.
Publicado originalmente no Passa Palavra
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