O TRISTE NISSO TUDO É TUDO ISSO
O
compositor capixaba Sérgio Sampaio (1947 – 1994) ficou famoso com a
marcha-rancho Eu quero é botar meu bloco na rua, lançada no Festival
Internacional da Canção, em 1972, no auge da ditadura empresarial-militar
brasileira. O Bloco imortalizou o compositor e é cantada até hoje.
Captou e expressa o desejo de libertação entalado nas gargantas. Mas Sérgio
Sampaio deixou uma obra atual que vai além do Bloco. Foi o que comecei a
perceber ao ouvir o verso “o triste nisso tudo é tudo isso”, numa canção que
tem o sugestivo nome Roda Morta [1]. Depois fui percorrendo o
trabalho do compositor capixaba e foi como se ele estivesse vivo e falando do
tempo presente.
O
poeta Roberto Piva dizia não acreditar em poetas experimentais que não tivessem
vidas experimentais [2]. Sérgio Sampaio foi um poeta experimental com
uma vida experimental. Transitou entre a vanguarda e a tradição, passando pelo
rock. Gravou apenas três discos. Não era impopular, foi impopularizado pela
indústria fonográfica – disse o também poeta e compositor Sérgio Natureza [3].
Mas, como registrou na canção Sinceramente, no álbum de mesmo
nome, gravado em 1982 (o último do compositor capixaba): “Não há nada mais
bonito do que ser independente”.
Em
1971, com Raul Seixas, Edy Star e Miriam Batucada, Sérgio Sampaio lançou o
mítico disco Sociedade da Grão-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10.
A primeira canção é Êta vida, fala das maravilhas do Rio de Janeiro
para arrematar com: “mas não era o que eu queria, o que eu queria mesmo era me
mandar”. A canção Quero ir se encerra com o mesmo sentimento: “O sol
daqui é pouco. O ar é quase nada. A rua não tem fim. Eu volto prá Bahia. Ou
para Cachoeiro de Itapemirim.” No mesmo disco há uma canção, também de Sérgio e
Raul, que é uma espécie de prenúncio de Eu quero é botar meu bloco meu na
rua, chama-se Vou botar pra ferver: “Eu vou botar pra ferver, no
carnaval que passou.”
Sérgio
Sampaio era tido como maldito e difícil. O músico e produtor Roberto Menescal
relatou uma situação estranha que acontecia com compositor capixaba [4].
Toda vez que ele ia ao rádio ou à TV, as vendas de seus discos diminuíam, o que
teria a ver, segundo Menescal, com o astral pesado do artista. A questão é que
o peso está na própria música de Sérgio Sampaio. É justamente o pessimismo,
entendido como uma espécie de antiautoajuda, que garante a atualidade das
canções do compositor capixaba. Exemplo. Viajei de trem: “Um aeroplano
pousou em Marte, mas eu só queria ficar à parte”.
Um
amigo petista dizia, em 2018, um pouco por pirraça e um pouco por desespero,
que Geraldo Alckmin era mais perigoso que Jair Bolsonaro. Não sei se ele mantém
a opinião depois de quatro anos de desgoverno do segundo. Nunca perguntei,
seria indelicado. Seja como for, a “opção” que se oferece atualmente é Lula –
com Alckmin comendo pelas beiradas da vice presidência – para derrotar
Bolsonaro. É escolher entre o ruim e o pior ainda. Isso sem contar os
bolsonaristas armados que não serão vencidos nas urnas nem convencidos pela política
de conciliação de classes. A obra de Sérgio Sampaio parece ter sido composta
nestes e para estes tempos estreitos, limitados e perigosos. Exemplos. Pavio
do destino: “o bandido e o mocinho, são os dois do mesmo ninho”. Hoje não: “Hoje não tem nada disso, de
ser feliz por aí, hoje eu não quero comício aqui”. Meu amigo petista votará em
Lula – apesar do Alckmin – para derrotar Bolsonaro. Eu, pelo meu lado, um pouco
por pirraça e um pouco por vingança, sugeri, sem explicar o porquê, que meu
amigo ouvisse Sérgio Sampaio.
O
compositor capixaba captou o peso, a aflição, o pessimismo e, sobretudo, a
desconfiança generalizada, como em Filme de terror: “Dura um ano
inteiro, o filme de terror [...] Quem ousar sair de casa, passe a tranca e
feche o trinco [...] Abra os olhos com os vizinhos”. A diferença é que o filme
de terror chamado Brasil dura séculos. Mesmo o Bloco é uma canção
pessimista, apesar de ter expressado o desejo de libertação entalado nas
gargantas. O próprio Sérgio Sampaio considerava o Bloco triste. Certa
vez disse ao poeta Waly Salomão que não entendia por que uma canção tão triste
fazia sucesso no carnaval. Ao que o poeta respondeu com uma pergunta: “quem te disse
que o Carnaval é alegre?” [5]
Era
1997. Três anos depois da morte de Sérgio Sampaio. O escritor e compositor João
Moraes soube, por uma matéria de jornal, que se ninguém retirasse os restos mortais,
Sérgio Sampaio iria para uma vala comum [6]. João Moraes era secretario
de cultura em Cachoeiro do Itapemirim, cidade natal de Sérgio, de quem era
primo e divulgador. Ele conversou com o prefeito e organizou o translado. Buscou os ossos no
Rio de Janeiro e os levou para o Espírito Santo. Mas o prefeito resolveu
esperar o lançamento do disco Balaio do Sampaio para fazer o enterro [7]. Para não
deixar os ossos numa funerária, João Moraes guardou-os em casa. Se passaram treze
meses até que os restos mortais fossem finalmente enterrados em Cachoeiro do
Itapemirim. João Moraes conta que chegou a ir a bares, ainda no Rio de Janeiro,
com o esquife em que estavam os ossos de Sérgio Sampaio. Já em Cachoeiro,
costumava fazer saraus e colocava a caixa com os restos mortais do compositor
em cima da mesa, mas apenas quando a música estava boa. Chegaram a apelidar os
ossos, carinhosamente, de “sérgios mortais”.
Poderia
concluir dizendo que Sérgio Sampaio foi um poeta experimental com uma obra, uma
vida e uma morte experimentais – os ossos passeando por bares e frequentando
saraus. Mas arrisco mais algumas palavras, porque me ocorreu um paralelo
inusitado ao ouvir Sérgio Sampaio e lembrar do meu amigo petista que achava
Alckmin mais perigoso que Bolsonaro, pelo menos até o ex-tucano virar vice do
Lula. Os restos mortais do compositor capixaba vagando antes do enterro
definitivo me fizeram pensar na esquerda brasileira, como se ela fosse um punhado
de ossos dentro um esquife levado para bares e saraus.
Notas
[1]
A
canção Roda Morta é uma composição de Sérgio Sampaio com o poeta
Sérgio Natureza.
[2]
Roberto Piva:
assombração urbana.
[3]
O
depoimento de Sérgio Natureza está em Sérgio Sampaio –
Tem que acontecer
[4]
Rodrigo
Moreira. Eu quero é botar meu bloco na rua! 2. ed. Niterói: Muiraquitã, 2003. p.
93.
[5]
O
diálogo entre Waly Salomão e Sérgio Sampaio está na biografia citada na
nota anterior, p. 78.
[6]
O
depoimento de João Moraes está em Sérgio Sampaio –
Tem que acontecer.
[7] Balaio do Sampaio
é um tributo ao compositor capixaba, contou com a participação de Chico César,
João Bosco, Zeca Baleiro, Lenine, João Nogueira, Jards Macalé, Luiz Melodia e
outros.
Publicado
originalmente no Passa Palavra
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