FORÇAS PRODUTIVAS X RELAÇÕES DE PRODUÇÃO

 

No prefácio de Contribuição à crítica da economia política está um parágrafo famoso e intenso [1], com um trecho que sintetiza, de certa forma, o pensamento marxista (do próprio Marx e não necessariamente dos marxistas que vieram depois): “Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social.”

 

Para iniciar é preciso definir, minimamente, o que se entende por forças produtivas e relações de produção. Forças produtivas: capacidade social de gerar valor própria da força de trabalho. Relações de produção: regime de propriedade, formas de organização do processo produtivo e de exploração da força de trabalho.

 

No modelo marxista o desenvolvimento das forças produtivas determina as relações de produção, até que estas entrem em contradição com aquelas, abrindo o tempo da revolução social. Marx deixou indicações sobre como pode se expressar a contradição entre as relações de produção e as forças produtivas no capitalismo. São possibilidades que não se excluem e podem ocorrer simultaneamente:

 

- Queda tendencial da taxa de lucro causada pelo desenvolvimento tecnológico e o crescimento da composição orgânica do capital, movimento que intensifica a exploração e a luta de classe.

 

- Crises periódicas provocadas pela queda da taxa de lucro, acirrando a exploração e a luta de classes. Vale pontuar, para diferenciar do item anterior, que as taxas de lucro podem cair por outras razões que não o crescimento da composição orgânica do capital.

 

- Miséria relativa da classe trabalhadora, que apesar de consumir mais quantitativamente devido ao crescimento da produtividade, fica com parcelas decrescentes da riqueza social, expropriada em parcelas crescentes pela burguesia.

 

- Estranhamento provocado pela separação dos produtores em relação aos meios de produção, ou, dito de outra forma, pelo não reconhecimento dos trabalhadores nos produtos do trabalho, que lhes aparecem como entidades estranhas, hostis e que se voltam contra seus produtores.

 

Como não poderia deixar de ser, o pensamento de Marx provocou diversas interpretações e possibilidades. Cito algumas:

 

- Há quem enxergue uma inevitabilidade na revolução, como se o capitalismo fosse morrer de velho, sem a ação revolucionária da classe trabalhadora. Leitura apressada de um trecho presente no mesmo parágrafo de Marx, segundo o qual as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam condições para resolver antagonismo entre as classes sociais. Quem vai por este caminho esquece que criar condições não é necessariamente resolver, além de que a força de trabalho é elemento central das forças produtivas e, sendo assim, a contradição se dá, sobretudo, entre as relações de produção capitalistas e o proletariado. A força de trabalho é inseparável dos corpos dos trabalhadores, ou seja, o processo produtivo destrói quem trabalha. Basta pensar, por exemplo, nas doenças laborais e no desgaste causado pela intensificação do trabalho.

 

- Há quem considere que as forças produtivas não são neutras, ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas reforça as relações de produção capitalistas. É uma possibilidade aparentemente atestada pela realidade. Mas, se vamos por este caminho, perde-se uma espécie de esteio econômico da revolução. É como se a humanidade se propusesse problemas que ela não necessariamente pode resolver, contrariando o que Marx registrou no prefácio citado. Exemplifico perguntando. Consigo pensar a superação do feudalismo a partir da contradição entre forças produtivas e relações de produção. Na sociedade feudal se desenvolveram forças produtivas que se chocaram com as relações de produção. Mas o mesmo não ocorreu nem ocorrerá no capitalismo? Não há, no modo de produção capitalista, contradição (produtiva, do ponto de vista da produção social) entre forças produtivas e relações de produção?

 

- Há quem considere que a questão central é justamente conter o desenvolvimento das forças produtivas (como se fosse possível). Quem vai por este caminho pode chegar a qualquer ponto, só não deve se reivindicar marxista. Marx pensa a superação do capitalismo como o estabelecimento de relações de produção “novas e superiores”. Qualquer coisa diferente disso seria impensável. O capitalismo será superado pela positiva ou não será.

 

- Há quem considere que as forças produtivas deixaram de se desenvolver. É o que registrou Trotski no Programa de transição, no final dos anos 1930: “A premissa econômica da revolução proletária já alcançou há muito o ponto mais elevado que possa ser atingido sob o capitalismo. As forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e os novos progressos técnicos não conduzem mais a um crescimento da riqueza material.” O argumento encaixa com o trecho de Marx, mas está de acordo com o que se observa no mundo real? É razoável afirmar que “as forças produtivas da humanidade deixaram de crescer” a partir do final dos anos 1930? Quem vai por este caminho precisa ignorar a energia nuclear, a nanotecnologia, a internet e as possibilidades produtivas derivadas dela. 

 

Antes de prosseguir vale lembrar que, para Marx, o modo de produção capitalista foi revolucionário porque permitiu um intenso desenvolvimento das forças produtivas. Olhando de hoje para o passado podemos pensar, por exemplo, na ampliação da produção agrícola, no aperfeiçoamento das formas de transporte e comunicação, no desenvolvimento da medicina e da ciência, no aumento da população e da expectativa de vida. Vão contra-argumentar, com razão, que a maioria desses desenvolvimentos não são isentos de contradições, sendo a principal a destruição ambiental que podem provocar. Mas não é este o ponto, por aqui. Interessa-me registrar que o desenvolvimento das forças produtivas – entendido como a capacidade social de produção – é inequívoco e razoavelmente constate no capitalismo. E isso ocorre por uma determinação do próprio modo de produção. Para sobreviver à concorrência, os capitalistas precisam explorar cada vez mais a capacidade de gerar valor da força de trabalho. Produzir mais com menos. O resultado final pode até ser a destruição do meio ambiente, é uma possibilidade, mas que não altera o fato de que as forças produtivas se desenvolvem cada vez mais. Também é verdade que no capitalismo se mantêm e se relacionam formas de exploração extensiva (mais-valia absoluta) e intensiva (mais-valia relativa), mas a dinâmica do sistema é determinada nos setores mais avançados tecnologicamente, ou seja, que exploram a mais-valia relativa.

 

A questão que sempre me intrigou passa por uma afirmação presente no mesmo trecho de Marx: “Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter”. Se é assim, teria o modo de produção capitalista desenvolvido todas as forças produtivas que contém? A pergunta se justifica porque na sequência Marx afirma que “relações de produção novas e superiores” não se estabelecem sem que as condições materiais de existência tenham se desenvolvido na própria sociedade.

 

Está mais ou menos nesse ponto a questão que me intriga. A força de trabalho produz cada vez mais. Observam-se seguidas transformações nos métodos e técnicas produtivas que ampliam a capacidade social de produção. Ou, colocando em forma de pergunta: a capacidade de produção da força de trabalho atual é superior se comparada com os tempos de Marx? Se respondemos sim à questão formulada, surgem outras: é possível afirmar que as relações de produção (capitalistas) se tornaram “entraves” para o desenvolvimento das forças produtivas? Quais são e onde estão as condições materiais que permitem o estabelecimento de “relações de produção novas e superiores”?  

 

Mesmo considerando que a força de trabalho é o elemento central das forças produtivas, mesmo considerando que o desenvolvimento destas passa pela exploração intensificada daquela, o fato observável é que a capacidade social de produção continua a se desenvolver. Ou melhor e em forma de pergunta, há contradições entre as forças produtivas e as relações de produção capitalistas, mas estas se tornaram um “entrave” para aquelas?

 

Em Marx o revolucionário se confunde com o teórico, o que explica alguns limites e muitas possibilidades. Não há pensamento revolucionário sem prática revolucionária. Repetidas vezes Marx registrou que a revolução estava próxima. Dificilmente poderia seguir por outro caminho. Não se luta sem certezas. Marx era uma das principais expressões do movimento revolucionário de seu tempo, não ocuparia a mesma posição caso considerasse a revolução como uma possibilidade distante. Mas o fato é que o modo de produção capitalista se revolucionou repetidas vezes e adiou o socialismo para os séculos posteriores.

 

Considerando o grau de desenvolvimento das forças produtivas no tempo presente, partindo principalmente capacidade crescente de geração de valor da força de trabalho, é possível o estabelecimento revolucionário de outras relações de produção. Mas é razoável utilizar os adjetivos empregados por Marx? É possível pensar em relações de produção “novas e superiores”? Se sim, seguindo Marx e considerando que as “relações de produção novas e superiores” não se estabelecem sem que as condições materiais de existência tenham se desenvolvido na sociedade, é preciso indicar quais são e onde estão tais condições. E mais, é preciso pensar, a partir do atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas, o que seriam relações de produção “novas e superiores”?

 

Enfim, mantenho uma certeza: a superação do capitalismo passa pelo estabelecimento revolucionário de relações de produção “novas e superiores”. Mas como? Se as forças produtivas não entram em contradição com as relações de produção, se não se tornam entraves produtivos: qual o limite do capital?

 

Notas

 

[1] Além do trecho citado, no mesmo parágrafo Marx registra:

 

[...] “O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.” [...]

 

[...] “a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir.” [...]

 

[...] “As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo de produção social, antagônica não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições de existência sociais dos indivíduos; as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para resolver esse antagonismo.” [...] 


Publicado originalmente no Passa Palavra

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