DUAS
VEZES RONALDO
Como seria um craque
platônico? Entidade fundamental da qual os demais seriam cópias desgastadas e
inferiores. Teria a elegância de Falcão e Ademir, o encanto de Maradona e Mané,
a capacidade de decisão de Pelé?
Já que estamos no campo
gramado das idéias, imaginemos o embate de um craque platônico contra uma
defesa também ideal, um antecipando os movimentos da outra e vice-versa.
Destruição contra criação. Pior que isso. E se existissem goleiros platônicos?
A bola jamais entraria? Agora o pior dos mundos. E se houvesse um árbitro
ideal? Que nunca errasse? Quem culparíamos nas derrotas?
Voltemos para os terrões
do mundo real. O futebol é tão includente que elege figuras díspares como um
Sócrates e um Romário, um Djalminha e um Kaká. Mais do que isso. Elege
inclusive o acaso, que não cabe no mundo platônico. O futebol é essencialmente
humano e, consequentemente, antiplatônico. Se visitados por seres
extraterrestres, o melhor que faríamos seria convidá-los para uma pelada.
Obviamente que a esquadra humana não deve ser formada com os engenheiros
pernetas da Nasa, para não causar má impressão nos ETs. Perder em casa (Terra)
é sempre complicado.
Mas voltando ao craque. O
que define esta entidade misteriosa? É um ser tão arisco que dribla inclusive
as definições. Mas arrisquemos um desarme: o craque é um insubordinado, sua
arte consiste em subverter o encadeamento geométrico e previsível valendo-se do
cálculo e da antecipação das coisas. É por isso que a tarefa de marcar e
anular um craque é inglória, o marcador está sempre exposto à negação da
negação.
O futebol é uma equação
absurda. É uma relação de probabilidade entre uma infinidade de casos
favoráveis e um imatematicável número de casos possíveis. O craque é o maestro
disso tudo.
Exemplifiquemos. Estádio
Urbano Caldeira, Vila Belmiro, onde dizem que jogadores mortos se encontram
semanalmente para uma pelada noturna. 26 de abril de 2009, domingo à tarde,
final do Paulistão. Chutão para o alto. A bola, que não é boba, procura
Ronaldo, que relativizando a lei da gravidade, a apara sem perder a passada e o
movimento, como um pai que arremessa o filho para o alto segurando-o
caprichosamente antes de tocar o chão. A pelota desce sem pressa, da direita
para a esquerda, afastando-se do zagueiro mais próximo e se ajeitando para o
afago letal, do lado oposto e longe do marcador. O lateral direito tenta chegar
pelo flanco, mas é inútil. O domínio do craque e o movimento do seu tronco
foram precisos. Ronaldo e bola caminham como namorados, de mãos dadas; e
felizes, como um dono e seu cão (e os casais de namorados no começo do relacionamento). Depois de amortecer a queda da redonda com o
pé direito, vem o arremate fatal de esquerda. Bola na rede. Zagueiro, lateral e
goleiro são reduzidos a figurantes.
No mesmo dia e local,
alguns minutos depois, um marcador recupera a bola no meio campo e lança
Ronaldo. Contra-ataque em velocidade. É a jogada mais mortal do craque. Sabendo disso, o goleiro se adianta para impedir o avanço. Antieclidiano, Ronaldo corta para trás, o arqueiro fica no meio do caminho
(como a pedra do poeta). O marcador passa batido. Com mais um pequeno mimo de
direita na pelota, o marcador está definitivamente fora de combate, a meta se
abre para o craque (como se fosse a máquina do mundo). Vem um leve empurrão de esquerda por baixo. Encantada, a
redonda esboça uma parábola, cobre o goleiro e descansa nas redes, como se arremessada por um jogador
de basquete.
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