13 DE JUNHO
Foi
há nove anos. 13 de junho de 2013. Era uma quinta-feira, dia de Santo Antonio,
conhecido no Brasil como “santo casamenteiro”. Mas naquela quinta-feira ocorreu
um divórcio. Santo Antonio nasceu em Portugal e morreu em Itália, em 13 de
junho de 1231. No Brasil, em 13 de junho de 2013, morreu um determinado arranjo
de forças sociais. Daquele dia em diante prevaleceu o arrocho e a repressão. Acabou
ali, ou pelo menos deveria ter acabado, a ilusão na conciliação de classes. Mas
apenas a direita percebeu.
Antes
de prosseguir, duas ressalvas importantes. 1º) Serão comentados fatos ocorridos
em São Paulo, mas as jornadas de junho de 2013 cortaram o Brasil de norte a sul
e de leste a oeste. 2º) Como pontuou Milan Kundera, somos separados do passado
por duas forças que cooperam entre si: o esquecimento (que apaga) e a memória
(que transforma).
Os
editoriais da mídia empresarial pediam mais repressão contra o Movimento Passe
Livre (MPL). Estadão: “Chegou a hora do basta”. Folha: “Retomar a Paulista”. O
quarto ato contra o aumento da tarifa foi marcado para o final da tarde, na
Praça Ramos de Azevedo, no centro da cidade.
Era
infernal o barulho das viaturas e dos helicópteros. O comércio fechou as
portas. O Viaduto do Chá foi ocupado pela polícia. Os presos no início do ato
foram levados no sentido do Centro Velho. A manifestação seguiu para a Praça da
República, depois Avenida Ipiranga. A repressão brutal e desmedida – reivindicada
pela mídia empresarial – começou poucos metros à frente, na Rua Consolação, na
altura da Praça Roosevelt. Uma parte do aparato repressivo fechou a passagem da
manifestação. O bloqueio policial foi montado na altura do Mackenzie, um pouco acima
do entroncamento das ruas Caio Prado, Dr. Cesário Mota Júnior e Maria Antonia. Uma
coluna de soldados com escudos e cassetetes atacou a manifestação por trás,
dividindo o ato em dois blocos. Começaram os disparos com balas de borracha e o
bombardeio de gás lacrimogêneo. Os manifestantes gritavam: “Sem violência! Sem
violência!” A tropa cumpria à risca as ordens da mídia empresarial. Todos os
acessos para a Avenida Paulista foram fechados. Houve enfrentamentos e
tentativas de furar os bloqueios. Num famigerado programa policial de fim de
tarde, exibiam-se imagens ao vivo enquanto o apresentador dizia que os “vândalos”
tentavam chegar na Paulista.
Um
ano e meio antes, no início de 2012, ocorreu a brutal desocupação do
Pinheirinho, quando mais de cinco mil pessoas perderam o teto. O que sinalizava
o endurecimento da repressão. Mas a comoção e a resposta não foram proporcionais
à violência estatal. Apesar do cerco, dos relatos, dos vídeos e das fotos.
Mas
na quinta-feira, 13 de junho de 2013, a repressão ocorreu no coração de São
Paulo e foi amplamente relatada, fotografada, filmada e televisionada. A mídia
empresarial precisou mudar o tom, denunciou também a violência policial e
tentou redirecionar a revolta. Dois dias depois a capa da revista Veja
estampava: “A revolta dos jovens – depois do preço das passagens, a vez da
corrupção e da criminalidade.” Até aquele 13 de junho não havia camisetas da
seleção brasileira nos atos, nem refrões ridículos, como “sou brasileiro com
muito orgulho, com muito amor”.
Na
segunda-feira seguinte, 17 de junho de 2013, a manifestação contra o aumento da
tarifa foi marcada para o Largo da Batata, no final da tarde. Impressionante. A
conjuntura havia mudado. Pelas ruas da região notava-se um intenso movimento de
pessoas a caminho do ato, muito antes do horário marcado. O preto e o vermelho
começaram a ser encobertos pelo verde e o amarelo. A manifestação cresceu. Mas
o público era outro. Outra estética. Outras cores. Outros ideais. Surgiram os
primeiros gritos diretamente contra Dilma Rousseff e o PT. Houve quem tentou
puxar palavras de ordem contra o governo do estado de SP – chefiado à época por
Geraldo Alckmin, do PSDB –, mas sem conseguir contagiar os presentes. Naquele
17 de junho houve manifestações em várias cidades. Foi também naquela
segunda-feira que surgiram os primeiros gritos de “sem vandalismo” enquanto
alguns grupos faziam pichações. Os gritos de “sem partido” ganharam força naquele
dia. O que não apareceu foi a repressão. A polícia estava presente, mas à
distância e orientada a evitar o uso da força. Se a repressão ocorrida em 13 de
junho se repetisse as consequências seriam imprevisíveis. A manifestação era
muito maior e o público era outro. O crescimento do ato tinha a ver com o
rechaço à violência policial, dobrar a aposta repressiva jogaria ainda mais a
população contra o Estado e a polícia, com consequências imprevisíveis.
Na
quinta-feira, 20 de junho de 2013, o aumento da tarifa havia sido cancelado. A
manifestação marcada para a Avenida Paulista foi mantida. Seria uma
comemoração. Como as bandeiras dos partidos estavam sendo rechaçadas, a esquerda
foi ao ato em bloco e com seus símbolos. Acabou se autoisolando e foi atacada.
Provavelmente o ataque fascista contra o bloco da esquerda foi incentivado e
apoiado por agentes da repressão. O resultado foi que a comemoração pela queda
da tarifa virou um grande mal-estar. Uma questão que fica é: foi correta a
opção por criar um bloco de esquerda vermelho e preto e facilmente
diferenciável do restante da manifestação?
Naquela
quinta-feira, 20 de junho de 2013, um fato passou quase despercebido. O bloco da
esquerda atacado pelos fascistas estava no começo da Avenida Paulista, mas a
manifestação foi grande e havia outros grupos, inclusive algumas dezenas de punks
blasfemando contra Deus, o Estado e a propriedade privada. Provocação muito
maior que a mera presença de bandeiras dos partidos de esquerda. Mas, curiosamente
ou não, os punks não despertaram o ódio fascista, o que sugere que o ataque ao
bloco da esquerda foi planejado e executado por agentes da repressão. Que
populares se juntariam aos infiltrados era uma possibilidade provavelmente
prevista e esperada.
A
partir de junho de 2013 as manifestações se sucederam. No ano seguinte o eixo
passou a ser “Não vai ter Copa”. Houve protestos, a repressão foi brutal e a
Copa aconteceu. Mas o sonho com o título mundial em casa, que seria – para os
gestores petistas – a consagração após doze anos no poder, acabou nos 7 a 1 e
se tornou a maior vergonha do futebol brasileiro em todos os tempos.
Olhando
de hoje para trás, fica evidente que não bastou o povo ir às ruas. De qualquer
forma, apesar do crescimento do verde-amarelismo bocó, a partir de 17 de junho
de 2013, as manifestações giraram em torno de pautas progressistas: transporte
(passe livre), educação (naqueles dias se ouvia que um professor vale mais que
o Neymar) e saúde (“queremos hospitais padrão FIFA”, lia-se em muitos
cartazes). De acordo com o Datafolha,
a saúde era o principal problema do país para 48% dos brasileiros em junho de
2013. Mas o governo petista nem queria e nem podia atender as reivindicações
das ruas e as demandas populares. Ao mesmo tempo, as forças mais à esquerda não
conseguiram unificar e dar consistência aos protestos, exigindo saúde, educação
e transporte públicos e de qualidade. Esse divórcio duplo – iniciado naquele 13
de junho de 2013 – ajuda a explicar os impasses do tempo presente.
As
forças à esquerda não avançaram para além da explosão inicial. O reformismo
rebaixado (petismo) mostrou-se incapaz de integrar ou conter as lutas. O
governo Dilma além de se revelar absolutamente inapto para responder às
demandas das ruas, ainda atuou em sentido contrário e aprofundou o ajuste
fiscal já a partir de 2013, estreitando a base em que se sustentava. Era
natural que ficassem brechas a serem exploradas pela direita.
Se
é assim, culpar junho de 2013 pelo avanço da direita, como fazem os alguns setores
petistas, só serve para tentar absolver o reformismo rebaixado, além de atuar
como condenação prévia contra levantes futuros. É ação típica dos nostálgicos pelos
“anos de ouro” do lulismo, que sonham com uma sociedade de consumidores
conformados e, deliberadamente, esquecem fatos importantes, como o envio de
tropas brasileiras ao Haiti, em 2004, que deu asas a diversos militares que,
posteriormente, comporiam o governo Bolsonaro.
Por
fim uma sensação. As cartas continuam sendo jogadas. Para bem ou para mal, é
como se ainda estivéssemos naquele junho. O que ajuda a explicar o sentimento
de cansaço. O impasse prossegue. O futuro responderá.
Publicado originalmente no Passa Palavra
Nenhum comentário:
Postar um comentário