GRIPE SUÍNA
Um
rifão: com doença não se brinca não, se for a gripe suína então... (e vai rifão
mesmo, porque é palavra da época da Dona González, e rima com então e não).
Segundo ela, os vírus que começam com H, como o da gripe suína, são os piores,
daí a preocupação com o H1N1. Isso, de acordo com Dona González, tem tudo a ver
letra cabalística H, que é a sexta consoante e oitava letra do alfabeto. Na
média dá sete. E sete são as trombetas do apocalipse e os pecados capitais, assim
como sete palmos de terra esperam os descuidados.
Toda
atenção é pouca, todo cuidado é insuficiente. Dona González sabia disso, apesar
de não receber os e-mails sensacionalistas que informavam que o governo estava censurando
informações (conclusão que ela formulou por conta própria, como veremos à
frente), que havia vários óbitos de médicos, de enfermeiros e por aí vai. Ela
tinha vasto conhecimento sobre tragédias.
Na
verdade gostava de catástrofes naturais e sociais. Fica eufórica quando
acontecia uma queda de avião, um terremoto ou outro desastre. Grudava no rádio
ansiosa pelas atualizações. Sentia prazer em repassar notícias sobre tragédias,
aumentava o número de mortos e ampliava as conseqüências. Se chovia muito, dizia
que cidades inteiras estavam debaixo d’água, que haveria deslizamentos e
desabastecimentos. Se não chovia, dizia que haveria racionamentos, sugeria que
começassem imediatamente a evitar banhos e que parassem de regar as plantas. Se
ocorria um ataque terrorista em alguma parte do mundo, afirmava que o Brasil
seria o próximo alvo. Fosse familiarizada com computadores e com a internet,
Dona González passaria o tempo redigindo e enviando e-mails sensacionalistas.
Era
preciso lavar as mãos. Era preciso evitar aglomerações. Ela não chegou a cortar
a conversa matinal com o barbeiro do bairro, mas mudou a rotina. Batia na porta
– com a mão protegida por um lenço – à espera de que algum desavisado lhe
abrisse. Nunca encostar em maçanetas! Era a regra de ouro. O assunto das
conversas matinais? Gripe suína, óbvio: evolução da taxa de mortalidade,
teorias dos interesses por trás da criação da doença. Neste ponto Dona González
concordava com o barbeiro, muitos lucravam com o vírus. Mas os acordos eram
parciais. Ele defendia que as multinacionais farmacêuticas haviam criado a
doença. Ela sustentava que os criadores eram ligados à mídia. Um sujeito chegou
a esboçar uma terceira via, a teoria cartelização do vírus, que teria surgido da
parceria de canais de televisão com fabricantes de medicamentos. Mas, apesar da
solução intermediária, não houve acordo. Falavam de tudo, menos o porquê dela
bater na porta em vez de abri-la. O barbeiro não percebeu. Ela não comentava. Melhor
assim.
Terror
mesmo era o transporte público! Não tinha como fugir. Precisava comparecer a
supermercados e farmácias, cobrar aluguéis e ir a agências bancárias. Os
estoques de mantimentos e remédios precisavam ser garantidos. Os aluguéis
deviam ser cobrados. Extratos e saldos bancários não podiam ser ignorados. A
grande dificuldade eram as opções de segurança. Escolher é sofrer:
Opção
1 – Sentar no banco dos idosos e se expor a uma carga viral despejada de cima
para baixo.
Opção
2 – Viajar em pé e segurar nos apoios, que certamente estavam infectados.
Escolheu
a última opção. Quando ofereciam lugar para que ela sentasse, agradecia e
continuava em pé. Carregava álcool em gel e desinfetava as mãos exaustivamente.
Além disso, desenvolveu uma espécie de surfe rodoviário, modalidade que
consistia em viajar com as mãos na cintura, sem se apoiar. Se havia quem
surfasse em cima de trens, por que ela não poderia surfar nos corredores dos
ônibus? Quando o motorista freava, ela abria os braços e se equilibrava
balançando o tronco, sem tirar as mãos da cintura. Às vezes acertava
cotoveladas nas pessoas. Era um efeito colateral das medidas de segurança. Desculpava-se
e seguia viagem. Mas havia um risco – minimizado é verdade, mas não eliminado
–, alguém podia tossir e lançar o vírus por perto. A solução? Recorreu a uma
bíblia salvadora, que carregava na bolsa. Quando alguém ameaçava tossir, sacava
a bíblia e cobria as vias respiratórias. A idéia surgiu dentro do ônibus, ao
ouvir um pregador.
–
Irmãos, dizem que é o fim do Mundo. Não é! Não se enganem! Não se preocupem!
Não tenham medo! Não deixem de ir aos cultos! Essa gripezinha só pega em quem não
acredita na palavra de Deus, em quem não tem fé.
Dona
González se afastou do pastror, que falava alto, quase cuspindo. Desejou que
alguém tossindo se aproximasse dele, para saber se o cidadão pregaria com
exemplo, ou se discretamente se retiraria. Avaliava que a última opção era mais
provável. De qualquer forma, pouco importava. O fundamental era se defender com
a palavra de Deus. Se quem tinha fé não precisava se preocupar, quem se
protegesse com a bíblia estaria definitivamente livre da doença.
Dúvidas
atormentavam Dona González. 1) Receber os aluguéis em espécie ou depósitos
bancários? Dinheiro vivo pode estar contaminado, ela não confiava nem um pouco
nos inquilinos; mas também desconfiava dos banqueiros. Como confiava mais naqueles
do que nestes, continuou recebendo em dinheiro, que guardava embaixo do
colchão. Banco só para fazer pagamentos e outras operações inevitáveis. Neste
ponto contrariou os especialistas, que sugeriam evitar notas e moedas. Dona
González suspeitava que os tais especialistas fossem, na verdade, agentes dos
banqueiros. 2) Pagar as compras com dinheiro ou cartão? Se aquele passa de mão
em mão, este tem a terrível desvantagem de expor os dedos. Escolheu a última
alternativa, mas só digitava com caneta e segurando na tampa, para minimizar
riscos. Neste ponto seguiu as orientações dos especialistas, passou a usar
cartão para os pagamentos e, por conta própria, desenvolveu a técnica e a
habilidade para digitar a senha segurando na tampa da caneta esferográfica.
Às
vezes a lógica privada se chocava com a pública. Escolhia a privada, sem
pestanejar (e sem trocadilhos). Não se arriscava em banheiros públicos. Nas
emergências, quando não tinha opção, simplesmente não fechava a torneira nem apertava
a descarga. Nunca colocar a mão onde passam outras mãos – pensava. Tranquiliza-se
calculando que a água que desperdiçava na torneira economizava no vaso. Se via
dinheiro no chão, não pegava. As notas certamente teriam sido infectadas por
algum psicopata interessado em acelerar o colapso da humanidade.
Com
o tempo, Dona González aprendeu a estimar o número de infectados a partir dos
óbitos e da taxa de mortalidade da doença. Imediatamente constatou que a
quantidade de infectados estava subestimada. Se havia 1.500 mortos e se a
taxa de mortalidade era 0,4%, os infectados somavam cerca de 375.000, e não os
10.000 divulgados. Sim, alguma coisa estava errada, e para pior. Ou a taxa de
mortalidade era muito superior à divulgada, ou o total de infectados estava
subestimado. Dona González passava as tardes fazendo contas, projetava a
evolução da doença nos próximos dias. À noite assistia telejornais e verificava
se havia acertado nos cálculos. Não pense, caro leitor, que a mulher era
incapaz de formular tais raciocínios e de fazer contas complexas. Os meios de
comunicação faziam uma cobertura exaustiva e sensacionalista da pandemia. Dona
González passava horas ouvindo rádio. Era infalível nas contas quando precisava
cobrar juros de inquilinos que atrasavam o aluguel. Além disso, sentia prazer
em espalhar previsões apocalípticas para o barbeiro, os clientes da barbearia,
os atendentes das farmácias e das agências bancárias. Até inquilinos ela
assustava com previsões catastróficas. Sabia que podia incentivar calotes – por
que pagar o aluguel se o mundo está acabando? –, mas não resistia. Quando
alguém retrucava dizendo que os cientistas estavam trabalhando e que logo
surgiria a cura, ela explicava que nenhuma vacina seria desenvolvida em menos
de dois anos, emendava com a estimativa de mortos e infectados nos próximos
meses. Lembrava que, mesmo se surgisse uma vacina, seria cara e inacessível
para a maioria dos brasileiros. Recomendava cautela, prudência e realismo. Muita
gente vai morrer, todas as famílias vão perder entes queridos, melhor se
acostumar – insistia. Só parava quando percebia que as pessoas estavam
apavoradas.
Dona
González não confiava nos governos. Essa certeza lhe era anterior ao surgimento
da televisão, remontava ao período posterior à vinda da família González para o
Brasil, no imediato pós-revolução espanhola. Havia um componente anárquico na
opinião dela: Hay gobierno? Era contra! Desde siempre!
Dona
González fazia questão de lembrar que a gripe espanhola na verdade surgiu nos
Estados Unidos. No mais, oscilava entre os que enxergavam a pandemia como
desdobramento da gripe de 1918 e os que opinavam ser uma nova doença. No fundo,
torcia pelos primeiros, posto que, se estivessem com a razão, talvez ela
carregasse, no sistema imunológico, as informações necessárias para combater o
vírus. Preciosas informações imunológicas adquiridas pelos pais e avós, em
outros tempos.
Os
livros de epidemiologia registrarão quem estava certo sobre a origem da doença.
O sistema imunológico da Dona González não conhecia o novo vírus, mas ela
sobreviveu. Passada a fase crítica, retomou a rotina. Voltou a freqüentar a
barbearia da esquina e a abrir a porta segurando na maçaneta. Voltou a pagar as
contas com dinheiro vivo, porque em banco não se deve confiar – repetia sempre.
Está se preparando para a próxima tragédia, diz que surgirá uma pandemia muito mais
perigosa que a gripe suína.
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