O
BRASIL ENCOLHE
Uma
notícia foi pouco comentada. Entre 2011 e 2020, o Brasil empobreceu em termos
absolutos e relativos. Como o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 2,2% e a
população aumentou 8,7% na década, a renda média por habitante diminuiu1.
O tombo é ainda maior se comparado à evolução do PIB global, que cresceu 30,5%
no mesmo período. O encolhimento relativo da economia brasileira não é novidade,
aconteceu também entre 1981 e 2010. Ou seja, mesmo na década retrasada, apesar
dos analistas do mercado, que afirmavam incansavelmente que os “fundamentos da
economia eram sólidos”, o Brasil encolheu em comparação com o mundo.
Importante
destacar que, inclusive com o presidente que dizia “nunca antes na história
desse país”, o Brasil encolheu em relação às outras economias, apesar da
elevação dos preços das commodities exportadas, que criou certa ilusão de
riqueza e deu alguma margem de atuação para o governo. Para ser justo, o “nunca
antes na história desse país” faria algum sentido caso se referisse à elevação
dos preços das commodities exportadas pelo Brasil. Este sim fato inédito. Mas a
desindustrialização se manteve, e a concentração de renda não regrediu no
período. A banda passou e “o que era doce acabou”, como na canção do Chico.
Chama
a atenção a explicação uniforme da mídia empresarial para o fracasso econômico
do país. A partir de 2009 o Brasil teria expandido os gastos e o crédito para
combater a “crise financeira mundial”, a necessidade se converteu em
conveniência do governo petista, que ampliou a intervenção estatal na economia
e fez manobras contábeis, comprometendo a situação das contas públicas. Uma
variação ainda mais simplória da cantilena neoliberal, repetida ad infinitum pelos liberolas2,
explica a derrocada do país única e exclusivamente pela corrupção dos governos
petistas. É o discurso que ajudou a eleger o genocida que virou presidente. A
fragilidade das explicações midiáticas sobre a crise brasileira, proferidas em
geral pelos economistas dos bancos, depõe a favor da tese de que o país está
encolhendo. A cantilena simplória dos liberolas idem. A questão não é só a
fragilidade dos argumentos, porque a mídia empresarial e os liberolas sempre gargantearam
ideias duvidosas, o problema é a inexistência, pelo menos com um mínimo de
circulação, do necessário contraponto.
Antes
que me atirem a primeira pedra, esclareço que não se trata de defender Lula e
Dilma. Pelo amor de Marx! Questão importante, em tempos de encolhimento
generalizado, é definir os governos petistas com um mínimo de rigor: foram,
essencialmente, neoliberais. Ajudaram a pavimentar o caminho para o buraco em
que o país se meteu. O neoliberalismo brasileiro está estruturado sobre três
eixos: lei de responsabilidade fiscal, metas de inflação, geração de superávits
primários. Enquanto puderam, os governos petistas rezaram o terço da santíssima
trindade neoliberal. “Nunca na história do Brasil eles (empresários) ganharam
tanto dinheiro quanto ganharam quando eu fui presidente da república”, disse,
talvez com razão, Luiz Inácio Lula da Silva. Dilma começou a cair quando seu
governo se mostrou incapaz de gerar superávits primários para alimentar o
mercado da dívida pública.
Já
disseram que a manipulação está na verdade omitida e não mentira contada.
Algumas perguntas que a mídia empresarial e os liberolas não fazem, mas que
ajudam a iluminar a verdade omitida. Por que o Brasil foi o país que mais
cresceu nas primeiras décadas do século XX? Por que a economia brasileira está
encolhendo? Por que o encolhimento coincide com o neoliberalismo? Qual a
relação entre o avanço neoliberal e o tombo econômico? Por que a ampliação das
terceirizações não gerou empregos? Por que a reforma trabalhista não tirou o
país do atoleiro? Por que a reforma da previdência não resolveu os problemas da
nação? A única solução que a mídia empresarial e os liberolas dão para a crise
é empurrar contrarreformas goela abaixo, como um bêbado que ingere quantidades
crescentes de álcool. É como se a história tivesse acabado e não houvesse nem
passado, nem presente, nem futuro, nem, sobretudo, alternativas. Restando,
apenas e como única possibilidade, a radicalização do tripé neoliberal. As
contrarreformas do tempo presente são, em geral, tentativas de radicalizar a
lei de responsabilidade fiscal, de garantir as metas de inflação e a geração de
superávits primários.
É
compreensível que a mídia empresarial incorra em simplismos grosseiros para
explicar o tombo econômico do Brasil, além da visão estreita e de curtíssimo
prazo, lucram com o encolhimento do país. Nas crises a maioria perde, mas
alguns ganham, entre estes estão os principais anunciantes da mídia
empresarial. Relatório da Oxfam lançado em julho de 2020 informou que o
patrimônio dos 42 bilionários brasileiros, somado, aumentou em US$ 34 bilhões,
apesar da pandemia da covid-193.
Um
sintoma e um efeito do encolhimento do Brasil é o desaparecimento dos projetos
para o país4. Tirando
a mídia empresarial e os liberolas, alguém acredita que a submissão total ao
mercado vai gerar desenvolvimento? Menciono o desaparecimento dos projetos para
o país como constatação, não para defendê-los. Não se trata de propor um
projeto para o Brasil, não existe nem socialismo em um só país nem libertação
que não seja internacionalista. Não adianta substituir o neoliberalismo
entreguista pelo desenvolvimentismo nacionalista, assim como a centralização
estatizante não pode ser pensada como alternativa ao mercado capitalista, pelo
menos na perspectiva da emancipação dos trabalhadores. As experiências
desenvolvimentistas brasileiras5 atestaram que o país não vai se
desenvolver por dentro do capitalismo, com conciliações de classe e sem
rupturas. Mas chama a atenção, atualmente, a ausência de projetos para o país, até
o desenvolvimentismo nacionalista sumiu do mapa das ideias. Antes até a direita
tinha um projeto, atualmente nem a esquerda sabe o que é isso. A burguesia
brasileira se conformou com o papel de sócia menor do grande capital? Ou foi
sempre assim, sendo as experiências desenvolvimentistas exceções que confirmam
a regra? São questões para serem pensadas.
Como
desgraça pouca é bobagem, não apenas a economia brasileira está encolhendo.
Encolhe a política. Encolhe a fauna. Encolhe a flora. Encolhe a vida. Encolhe a
democracia. Encolhe a ciência. Encolhe a pesquisa. Encolhe o conhecimento.
Encolhe a moral. Encolhe a cultura. Encolhe o humor. Encolhe a literatura.
Encolhe a música. Encolhe o futuro. Até o futebol brasileiro está encolhendo.
Mas
é, sobretudo, na capacidade de crítica, de imaginação e de indignação que o
Brasil está encolhendo. Cito apenas alguns: que falta fazem Machado de Assis,
os anarquistas de 1917, os modernistas de 1922, Cora Coralina, Pixinguinha,
Carlos Drummond de Andrade, Carolina Maria de Jesus, o Centro Popular de
Cultura, Carlos Marighella, Clarice Lispector, Adoniran Barbosa, Zé Kéti e até
um autoproclamado reacionário como Nelson Rodrigues. Sim, os reacionários já
foram mais inteligentes, viraram meros liberolas.
1
Enquanto Brasil cresce apenas 2,2% na década, mundo avança
30,5%.
2
Liberola é um mamífero tipicamente brasileiro, diz que é liberal, mas na
verdade é carola. Liberalismo no discurso. Carolismo na prática. O liberola
defende, sobretudo, preconceitos atávicos, não hesita em abrir mão do livre
mercado sempre que considera necessário para a manutenção do status quo.
3
Bilionários da América Latina aumentaram fortuna em US$ 48,2
bilhões durante a pandemia.
4
Por projeto para o país entendo, por exemplo, as teorizações desenvolvimentistas
de um Celso Furtado, que, aliás, escreveu um livro chamado Um projeto para o
Brasil.
5 Considero que aconteceram experiências desenvolvimentistas nos governos Getúlio e Jango. Os governos Lula e Dilma foram, essencialmente, neoliberais.
Publicado originalmente no Passa Palavra
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