CRÍTICA: BUDAPESTE, DE CHICO BUARQUE


Vou registrar por escrito uma afirmação que costumo fazer apenas e tão somente em mesas de bar: no topo das letras brasileiras estão três sujeitos: Machado no romance, Drummond na poesia, Chico na canção. “Tá legal, eu aceito o argumento”: esse tipo de comparação é esdrúxula, me altere o samba o quanto quiser, mas quem bate esse três em seus respectivos ofícios? Quando digo respectivos ofícios é porque não vale falar do Machado poeta, do Drummond cronista, nem do Chico escritor.
Por que nunca li Paulo Coelho? Já me perguntei e me respondi: porque nunca ouvi comentário nem li crítica positiva sobre o cidadão, nem folhei em sebo alguma contracapa ou página apetitosa do sujeito. Pela mesma razão nunca tinha lido os romances do Chico. Atenção. Não estou comparando Coelho com Buarque, até porque li um único romance deste e nenhum daquele. Chico, para mim, era uma reserva técnica, um autor a ser lido na hora certa, quiçá “no tempo da delicadeza”. Quando ouvi e li elogios ao romance O Irmão Alemão, decidi que conheceria a literatura do menino do Rio.
Comecei por Budapeste, pode ter sido meu erro. Logo no início da leitura passei por arroubos elogiosos de escritores consagrados, que, para mim, tem muito mais a ver com a teoria do homem cordial, do pai do Chico, do que com o livro em si. Para encontrar as primeiras críticas negativas ao romance precisei caminhar para quinta página do Google.
Budapeste é a história de um escritor anônimo, um ghost-writer, que escreve para terceiros famosos ou não. O escrito pode ser uma tese de doutorado ou um bilhete de suicídio, um discurso de posse na academia de letras ou uma receita de bolo. O personagem principal transita pelo Rio de Janeiro, onde é José Costa, e por Budapeste, onde é Zsoze Kósta.
Costa e Kósta são Chicos rebaixados. É fácil notar em ambos as fixações do autor, por exemplo: o amor pelas palavras, o desejo de reconstruir cidades, as caminhadas como método de solução de dilemas criativos. Palavras cantadas por Chico são encontradas no romance, por exemplo: “lépido”; “catatônico”; “já passou, já passou”. Chico é um artista com ampla exposição midiática, há dezenas de documentários com ele e sobre ele, o resultado inevitável é que os romances serão interpretados a partir da biografia do autor. É por isso que Milan Kundera se recusa a dar entrevistas, para o bardo tcheco é a obra quem deve falar, e não o autor: a obra fala pelo o autor, o autor não fala da obra.
Como o personagem, Chico Buarque é infinitamente maior que José Costa e Zsoze Kósta. Só haveria uma maneira de superar este dilema: adotar um pseudônimo. E se Chico assinasse Budapeste como José Costa? Seria uma prova de fogo que, no mínimo, evitaria a cordialidade dos comentadores; mas a resposta da crítica, desconfio, seria um estrondoso silêncio.
De um autor sabidamente apaixonado pelas palavras, que prefere “letras negras sobre o fundo branco ao esplendor do mar”, era de se esperar descrições à lá Flaubert. Esperei sentado e me cansei. Rio de Janeiro e Budapeste, no romance, são cidades sem esgotos, sem pixos, sem mosquitos, sem sangue e sem graça. José Costa e Zsoze Kósta são tipos medíocres que escrevem para leitores medíocres. É o que explica o sucesso literário de ambos. Por vagarem solitários em hotéis e por certo desejo de anonimato, José e Zsoze chegaram a me lembrar o Doutor Pasavento, de Vila-Matas, mas Budapeste passa longe daquele. E como tem como no romance. Chico abusa das comparações que, por isso, soam como corpo estranho, como material pré-fabricado, como prótese ortopédica, como enxerto de massa acrílica nos ossos, como se o texto tivesse que se adaptar às comparações e não o contrário.   
Os personagens de Budapeste são insossos, sem açúcar e sem afeto. Como homens, não têm contradições; como personagens, são contraditórios. José Costa e Zsoze Kósta são escritores, mas poderiam ser gerentes de banco, ou contadores, ou coroinhas de igreja. Como imaginar homens tão apaixonados pelas palavras quanto indiferentes ao que escrevem? Que aceitam escrever qualquer coisa? Quem ama as palavras não escreve qualquer coisa. Se for para escrever qualquer coisa, melhor se calar, por amor às palavras, que o digam os poetas que preferem não cantar.
Chico desperdiça boas sacadas, poderia, por exemplo, explorar melhor a história do homem que escreve no corpo das amantes, talvez misturando Kafka com Kundera com Ks que aparecem em Budapeste (Kósta, Kriska, Kaspar Krabe). Mas, para pintar um tipo medíocre, como o ghost-writer do livro, seria preciso usar “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, é o que separa o defunto autor do autor defunto, José Costa não é Brás Cubas.
Terminei a leitura com a sensação de que Budapeste foi escrito por um ghost-writer medíocre, como Costa ou Kósta, como se um destes tivesse se apropriado do nome Chico Buarque para promover um romance meia-boca.


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