A ARTE DE DESAPARECER
Robert
Walser nasceu na Suíça e escreveu em alemão. Foi uma figura misteriosa. Era
obcecado por reduções e encurtamentos, uma espécie de micromania, uma atração
pela pequeneza que tendia ao desaparecimento. O que o torna sedutor em tempos de
vontade de aparecer e de mania de grandeza. Num texto intitulado Solicitação de emprego, Walser registrou:
“Sou, para dizê-lo francamente, [...] uma pessoa para a qual tudo o que é
pequeno e modesto parece belo e adorável, e terrível e pavoroso tudo quanto é
grande e assaz desafiador.”
Walser
é a antítese da civilização narcisista, vazia e desesperada para aparecer, que
se expressa na mania de escrever livros (grafomania), na presença ostensiva em
redes sociais, nas selfies fazendo biquinho com os lábios, nos corpos rasurados
por tatuagens, nos automóveis com alto-falantes potentes reproduzindo música horrível.
Walser assustava-se com a ideia de ter sucesso na vida. “Eu literalmente
desapareço sob essa massa de muitos” – registrou no conto A história de Helbling e praticou no dia a dia. Quando comentavam
que seus escritos haviam sido elogiados nos jornais ou no rádio, Walser
respondia “isso não me interessa!” Moral da história. Se a boiada vai para um
lado, melhor seguir na direção oposta. Se a ordem é aparecer, melhor
desaparecer. Se todos querem ser reconhecidos, melhor ser esquecido.
O
romancista Enrique Vila-Matas definiu Robert Walser como um pioneiro na arte de
desaparecer: permaneceu em sanatórios por vontade própria, fugiu da fama,
escreveu com letras pequenas, ilegíveis e dispersas em folhas soltas. No
romance de Vila-Matas sobre escritores que abandonaram a escrita, intitulado Bartleby e companhia, Walser é presença
marcante. Na vida real, o escritor suíço desapareceu em empregos provisórios,
voluntariamente em sanatórios, entre palavras pequenas e ilegíveis perdidas em
folhas soltas. No limite, abandonou a escrita.
O
escritor, Robert Walser, foi aclamado por Franz Kafka, Robert Musil, Walter Benjamin,
Elias Canetti, J. M. Coetzee, Enrique Vila-Matas. O homem, Robert Walser,
passou boa parte da vida em sanatórios, às vezes por vontade própria. A partir
de 1921, em letras minúsculas e ilegíveis, escreveu 526 microgramas. Eram
romances, crônicas, poemas e ensaios registrados em cartões, embrulhos e
calendários preenchidos até não caber mais micropalavras. Em 1933, parou de
escrever. Foi, provavelmente, a conseqüência inescapável da obsessão por cortes,
reduções e encurtamentos.
Walser
gostava de caminhar. Percorreu longas distâncias a pé. Não é raro escritores
recorrerem a caminhadas como parte do ofício, penso, por exemplo, em Eduardo
Galeano e Chico Buarque. Mas para Walser caminhar era essencial. Caminhava para
viver, e não apenas para escrever. Caminhar era o que lhe garantia um
equilíbrio mínimo. Os textos de Walser, especialmente os curtos, parecem a
mirada móvel de um andarilho, registram o que só vê quem está de passagem, a pé.
Imagino
Walser caminhando por um bosque, seus passos são discretos, sua respiração é
tranquila, ele é apenas contemplação, movimento e integração. “Algumas vezes,
Robert me chamava a atenção para alguma campina particularmente bela ou para
traços de nuvens e palacetes barrocos” – registrou Carl Seelig, que foi
escritor, editor, amigo e companheiro de caminhadas, além de ter publicado Passeios com Robert Walser. Juntos
percorreram longas distâncias a pé entre 1936 e 1955.
Seelig
conta que, em 1945, conversou com o médico-chefe do sanatório, em Herisau, para
que Robert Walser fosse transferido para uma ala “mais adequada”. Walser recusou
a proposta dizendo que queria viver e desaparecer com o povo. Parecia-lhe o
mais adequado.
Tarde
de Natal. 1956. Crianças brincando na neve encontram o cadáver de um homem. A
polícia é chamada e fotografa o corpo para compor o inquérito. Posteriormente,
as fotos foram divulgadas, talvez devido à sensibilidade estética de algum
policial. O que é um contrassenso, mas poderia acontecer nos contos de Walser. Em
uma das fotos são vistas pegadas na neve que levam até o cadáver. Pegadas do
fotógrafo? Da polícia? Das crianças? Do próprio morto? O homem vestia um casaco
preto, o braço direito estava junto ao corpo, o braço esquerdo estava esticado
e próximo ao chapéu, como se o sujeito tivesse saudado a chegada da morte.
Era
Robert Walser. Tinha 78 anos. Parecia feliz. As fotos do escritor morto
inspiraram pintores, cineastas e fotógrafos. Foram reproduzidas diversas vezes
e de muitas maneiras. O escritor andarilho encerrou a caminhada pela vida
registrado e fotografado para a posteridade.
Em
mais de um texto, Walser escreveu sobre mortes em caminhadas, inclusive na neve:
“Então, um dia, saiu a passear. Mas o vento soprava tão forte que apagou seus
olhos. Ele quis acendê-los de novo, mas não tinha fósforos”– registrou no conto
Duas histórias singulares sobre a morte. No
romance Os irmãos Tanner se lê: “Jaz
entre abetos magníficos, verdes, recobertos de neve. [...] Um repouso
esplêndido esse jazer congelado na neve, sob os galhos dos abetos.” Outro
trecho do mesmo romance: “Perto do Natal, ele subiu a ampla encosta da
montanha. Foi à tardezinha e fazia muito frio. Um vento cortante assobiava em
torno do nariz e das orelhas, vermelhos e inflamados pelo frio gélido.”
Naquela tarde de natal, em 1956, num bosque suíço coberto pela neve, literatura e caminhada se reencontraram na despedida de Robert Walser: remate interessante para uma existência baseada na arte de desaparecer.
Publicado originalmente no Passa Palavra
Nenhum comentário:
Postar um comentário