AS DESCULPAS POR DESCARTES

Lendo Não Há Lugar para Lógica em Kassel, de Enrique Vila-Matas, encontrei uma referência à Insustentável Leveza do Ser, as desculpas por Descartes, que me fizeram voltar ao romance de Milan Kundera, mais precisamente à sétima e última parte, intitulada O Sorriso de Karenin, que é o cão que se chamaria Tolstói, se não fosse menina, ou Ana Karenina, se não tivesse o focinho engraçado. Pelo tema e pela localização no livro, O Sorriso de Karenin lembra o capítulo Baleia, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, mas essa fica para outra oportunidade.

A Insustentável Leveza do Ser é um romance misterioso que se transforma a cada leitura. Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio (Heráclito), ninguém lê duas vezes o romance de Milan Kundera. A sensação é que o texto é um rio circular, que vai e vem, cristalino, profundo, renovado, sempre.

Kundera se vale da agonia da cachorra para refletir sobre a relação entre homens e animais, cita o começo do Gênese e provoca: “Nada nos garante que Deus desejasse que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo.” Na sequência, o bardo traz uma informação intrigante, na antiga Tcheco-Eslováquia, após a Primavera de Praga, o terror começou pelos pombos, passou pelos cães para só depois chegar aos homens, como se a repressão precisasse agir aos poucos e por partes. Primeiro exigiu-se o extermínio dos pombos. Depois os jornais, o rádio e a televisão denunciaram os cães, que sujavam calçadas e jardins ameaçando a saúde das crianças. Por fim, o ódio foi usado contra os homens, que foram processados, demitidos e presos.

Discutindo a relação homens-animais, Kundera contrapõe Descartes a Nietzsche. O francês fez do homem “mestre e dono da natureza”, além de negar que os animais tivessem alma. O alemão foi se distanciando da humanidade e enlouqueceu, sendo que, em 1889, em Turim, viu um cocheiro chicoteando um cavalo, e correu em direção ao animal, abraçou-lhe o pescoço e chorou. Numa daquelas sacadas que valem por centenas de tratados, e só cabem no romance, Kundera afirma que o divórcio de Nietzsche com a humanidade começou quando o filósofo chorou sobre o cavalo, como se pedisse perdão por Descartes.

Vila-Matas retoma a passagem de Nietzsche por Turim. Para o escritor catalão, o caráter contido, elegante e sereno da cidade poderia criar disparates imprevistos e assombrosas explosões de loucura, como a do filósofo alemão, que, na esquina da Via Cesare Battisti com a Via Carlo Alberto, abraçou o cavalo chicoteado e chorou, ou, segundo Kundera, pediu desculpas ao animal em nome de Descartes. Vila-Matas retoma a passagem de Nietzsche por Turim no romance em que explora sua própria passagem por Kassel, cidade alemã que abriga exposições quinquenais de arte contemporânea. O escritor personagem principal do romance passa uma semana escrevendo em público, num restaurante chinês da cidade alemã. Ele pensa em celebrar o sono com uma frase sobre a mesa do escritório improvisado: “Ao dormir, mais perto se está de Duchamp”. Mas, por fim, opta pelas “Desculpas por Descartes”.

A escritora personagem de J. M. Coetzee, Elizabeth Costello, denuncia a indústria da morte, que produz milhões de coelhos, frangos e bois exclusivamente para lucrar com seus assassinatos. A escritora esboça uma comparação que ela própria reconhece como complicada: associa os matadouros de animais do tempo presente aos campos de concentração do Terceiro Reich. Costello cita a “linguagem dos currais”: “morreram como animais”; “foram mortos pelos açougueiros nazistas”; “ao tratar seus semelhantes, seres humanos criados à imagem de Deus, como animais, eles próprios se transformaram em animais.” Seja como for, a comparação complicada da escritora personagem não minimiza sua crítica ao morticínio animal, nem suas reservas em relação a Descartes, que enxergava os animais como mecanismos e engrenagens.

Com Descartes condenado em segunda instância, segui minhas leituras e me deparei com O Erotismo, de George Bataille. O autor discute transgressões e interditos, aproxima erotismo e morte. Bataille mostra que “Deus fez o homem à sua imagem e semelhança”, mas, inicialmente, o homem não fez Deus à sua imagem e semelhança. A completa substituição dos animais por divindades humanas foi um processo demorado. Curiosa exceção seria a cauda do diabo. 

Bataille sugere que o mandamento “não matarás” contemplava os animais nos primórdios da humanidade. Para o autor, as cenas de caçadas presentes em cavernas não se explicam pela esperança de que a representação do objeto desejado contribuísse para a realização do desejo. As pinturas nas cavernas seriam tentativas de expiar a culpa dos homens pelos crimes cometidos contra os animais: “As imagens das cavernas teriam por objetivo representar o momento em que, diante do animal, a morte necessária, ao mesmo tempo condenável, revelava a ambuiguidade religiosa da vida: da vida que o homem angustiado recusa e que, no entanto, ele realiza na superação maravilhosa de sua recusa.”

Se o “não matarás” contempla os animais, Descartes está condenado na terceira instância. Mas há um atenuante. Por mais paradoxal que possa parecer, o imenso desenvolvimento das forças produtivas, representado também por Descartes, é o que pode permitir, um dia, a reconciliação do homem com o meio e, por tabela, com os animais. A separação dos saberes, que começou pouco depois do filósofo francês, e o intenso desenvolvimento tecnológico que se seguiu, certamente ampliaram o morticínio animal, mas podem possibilitar o contrário, ou seja, podem possibilitar que a denúncia de Elizabeth Costello prevaleça sobre as justificativas de Rene Descartes. O intenso desenvolvimento das forças produtivas permite, atualmente, que homens e mulheres se recusem a comer carne animal e a transformar bichos em engrenagens, o que reduz o morticínio. Se Bataille estiver correto, os primeiros homens carregaram a culpa pelos crimes que consideravam que haviam cometido contra os animais. Descartes transformou os animais em engrenagens nos primórdios do capitalismo, aparentemente sem peso na consciência. Mas o homem futuro, se derrotar o capital e controlar as forças produtivas, poderá estabelecer outras relações com o meio e com os animais. Para os primeiros homens não havia opção, só restou conviver com a culpa. As desculpas por Descartes seriam então, em alguma medida, também desculpas pelos primeiros homens.  Mas, para os homens futuros, se abrem outras possibilidades, possibilidades que começam a se apresentar no presente. E, se é assim, Descartes, em alguma medida, é parte da possibilidade de libertação: seriam as melhores desculpas. São as ambiguidades da vida. 



Pierre Huyghe: Untilled

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