Criatividade se desenvolve em banco de escola. A arte de matar o tempo nasceu no colégio. Só não se sabe ao certo se foi numa aula de matemática ou de química. Mas pode ter sido nos laboratórios de algum curso profissionalizante. É provável que as palavras cruzadas tenham semelhante origem. Isso para não falar das técnicas de cola, assunto para futuras crônicas.
Quais são as duas principais preocupações da maioria dos alunos (homens)? Simples. Futebol, garotas e passar de ano (Quase esqueci deste último item. Sintomático!). E isso não deve se alterar nos próximos séculos, nem na barbárie e nem no socialismo, principalmente no Brasil, o que reforça o argumento dos defensores da idéia de natureza humana. Por que nenhum filósofo demonstrou a existência da natureza humana a partir desse exemplo banal? Simples. Ou porque não havia futebol na Grécia. Ou porque não existem filósofos no Brasil, o que reforça o argumento de Roberto Gomes.
O tempo é tinhoso. Não passa nas aulas de matemática, mas depois... Quando saímos do colégio... A melhor forma de perceber que envelhecemos é reencontrar os colegas de escola. No Brasil até os espelhos são cordiais, à la Sergio Buarque de Holanda. Eles escondem a queda de cabelos, as rugas e por aí vai. Mas quando nos enxergamos nos nossos ex-colegas a coisa é diferente. Neste país de almas cordiais algumas expressões são portadoras da peculiaridade lingüística de expressar exatamente o seu contrário. É o caso da frase “você não mudou nada”, muito comum nos reencontros de colegas de escola. O sentido correto é: que barriga, ficou careca, credo...
Mas isto é crônica ou tratado filosófico? Que seja crônica. Se não acabo refutando a hipótese de que não há filósofos no Brasil. Sejamos cordiais. Esqueçamos a questão da natureza humana, voltemos para o futebol, as escolas e os reencontros.
Alunos homens só pensam em meninas e futebol. Certo? Criatividade se aprende na escola. Correto? Está montada a equação. Seria uma questão de tempo para algum moleque talentoso ter a idéia de juntar mulheres e futebol. Isso aconteceu num colégio técnico de São Paulo.
A principal vantagem do invento foi a economia lingüística e gramatical. A possibilidade de expressar o que realmente importa com máxima precisão é fantástica. Some-se a isso a importância estratégica de falar das meninas sem que elas percebessem, pelo menos era o que os inventores imaginavam. Como havia muitas aulas técnicas e poucas de conhecimentos gerais e humanos, a professora de português não teve tempo de explicar que a língua é aberta e pertence aos falantes. Mas esse fato de grandes conseqüências não é relevante por enquanto. O importante é que se aquele colégio técnico não produziu capítulos para a história da engenharia e dos processamentos de dados, no campo da lingüística os avanços foram maiores.
Exemplificando. As mais belas pernas da sala eram as da Fernandinha (Fê). E isso não é cordialidade. Que fique claro. Quando ela passava entre as carteiras um olhava para o outro, todos respiravam fundo e alguém comentava:
- Que alas! Que laterais! Atacam e defendem. Aí é Júnior e Leandro da Copa de 82.
Ao que outro respondia:
- Não. Não. Aí é Carlos Alberto Torres e mais um. Ou então é Cafu e Roberto Carlos dos bons tempos. Melhor. É coisa dos Santos, é Djalma e Nilton.
Houve outras tantas inovações. Verbos com forte carga de machismo como pegar e comer foram substituídos por sentenças não menos carregadas de preconceito. Por exemplo:
- E a menina da praia? Fez o gol?
- Opa. Driblei toda a zaga, o goleiro e fui pra rede.
O problema é que esses comentários eram sempre ideológicos, soluções imaginárias para contradições reais. Pura falsa consciência (no sentido do primeiro Marx). Pequenas mentiras do tipo das que são imprescindíveis para lubrificar as engrenagens sociais. Falsidades de classe, nesse caso a dos alunos do sexo masculino do colégio técnico.
Na verdade eles só faziam gols de mão e na pequena aérea dos banheiros, las manos de la necessidad. Fingiam melhor que o Maradona na Copa de 86. Como ninguém conhecia a menina da praia, não dava para confirmar os feitos. Mas esses tentos nem juiz ladrão validaria.
Para os leitores mais novos pode parecer absurdo, mas era uma época em que se emprestava revista de mulher nua, e com elas eram feitos milhares gols de mão. E não só. Era comum trocar a Playboy da atriz da novela por um trabalho de física ou por uma ajuda em química.
E a vida seguia. A barriguinha mais sensual da turma era a da Karina (Ká). Nas aulas de educação física ela dava um nó na camiseta deixando o umbigo para fora. Os garotos suspiravam:
- Caramba! Que meio de campo. Sócrates, Zico e Falcão. Que elegância. Que formosura. Aí é Gerson, Rivelino e Tostão.
E alguém continuava:
- Parece a meia canja do Palmeiras dos anos 90. Aí é Rivaldo e Djalminha.
As aulas de educação física eram as mais inspiradoras. Quando a Jack colocava a bermuda de ginástica... Ninguém ficava indiferente:
- Que bunda! Digo... Que retaguarda! Isso que é linha de zaga. Aí é Márcio Santos e Aldair. Ou então Gamarra e mais um. Pronto. Gamarra e Franco Baresi.
- Nada! Essa retaguarda joga com três beques: Gamarra, Franco Baresi e Franz Beckenbauer de líbero.
A Jack era unanimidade. Falar qualquer coisa contra a linha de zaga da Jack implicava em ser suspeito de marcar gols contra, que era como eles definiam os maiores inimigos, como o professor de matemática e os caras da outra turma. E tome politicamente incorreto.
Os seios mais notados eram os da Drika. Que ponteiros. Que ponta de lança. As comparações e metáforas eram inevitáveis. Para uns parecia o ataque da França de 1958, com Piantoni, Kopa e Fontaine. Para outros a Drika parecia o Santos de Pelé, Coutinho e Pepe.
Enfim, os anos passam, a escola acaba, vêm os casamentos, as separações, caem os cabelos e todos os anos os colegas se reencontram em algum barzinho. Dá última vez apenas os separados e solteiros estiveram presentes. As esposas, maridos e namorados vetaram os comprometidos. Então só puderam comparecer a Fê, a Ká, a Jack, a Drika e quatro rapazes (já quase senhores). A formação de quatro casais em potencial foi obra do acaso. Os reencontros de colegas de escola são caixinhas de surpresa.
A forma física deles deixava a desejar, não era o caso delas, pelo contrário. Quando a Fê chegou, sentou e cruzou as pernas um dos colegas até mudou de assunto:
- Mas o Roberto Carlos ainda joga? E o Cafu?
O decote da Drika fez um dos presentes citar o Santos de 2010:
- Nossa! Que que é isso? Robinho, Neymar e Ganso. Não tem pra ninguém!
As cervejas iam e vinham. A Jack apareceu. Quando ela virou e puxou uma cadeira um deles comentou:
- Mas quem foi que disse que o Brasil não tem zagueiros. E o Djalma Dias? E o Luís Pereira? E o Domingos da Guia? As melhores linhas de zaga são as nossas. Um brinde para os nossos beques!
Palmas. Todos os presentes do sexo masculino aplaudiram e concordaram.
O papo seguiu. As metáforas deles continuaram cada vez criativas. As cervejas iam e voltavam. Até que a Fê, a Ká, a Jack e a Drika trocaram olhares e foram ao banheiro. Eles aproveitaram a oportunidade e falaram sem metáforas:
- E a Ká? Vocês viram? Tá com a mesma barriguinha fofinha. Aquele ex-marido dela, hein? Pra largar a Ká o cara tem que ser doido. Ou então vai ver que ele gosta de fazer gol contra. É hoje que eu dou uns beijinhos naquele umbiguinho. Hum. Hum. Delícia.
Outro respondeu:
- É hoje que eu belisco o bumbum da Jack! Ai jesus!
Eles riram fartamente e nem desconfiavam que naquele exato momento as meninas falam deles no meio do banheiro.
A Fê olhou para a Drika e disse:
- Sempre a mesma conversa. Não muda. Vão reencarnar duzentas vezes e nada. Que carma. Vão da Hungria de Puskas à Holanda de Cruyff, mas mulher? Nada!
A Drika concordou e completou:
- Pois é. Sempre essa conversa furada. Falam do Barcelona e jogam que nem a seleção do Dunga, só na retranca, só toque de lado. Tipo o Zinho enceradeira na copa de 94. Tipo time do Muricy.
A Ká entrou na conversa:
- A gente vem, lança um charme e nada. A bola fica pingando na área e ninguém chuta. Esses caras são mais devagar do que o Ronaldo Fenômeno no fim da carreira. Ficam só na retranca. É zero a zero na certa.
Quem encerrou o diálogo foi a Jack:
- Meninas, vamos pedir a conta e cair fora. O negócio deles deve ser gol contra.
JC
Nenhum comentário:
Postar um comentário