11º Texto


* Nota preliminar: este texto é parte do debate sobre o livro A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. Os textos anteriores podem ser acessados aqui: Polêmica (A insustentável leveza do ser)

Li duas vezes seu Último Samba, mas não elaborei nenhuma resposta e nem retornei nada, por isso envio esta mensagem (mais um retorno do que uma resposta, porque sem grande elaboração). Já escrevi num desses textos que foi útil essa polêmica, o exercício de compreensão do pensamento do outro e de expressão do próprio é interessante. Por exemplo, só agora compreendi (ou acho que compreendi) porque você afirmou, lá no começo, que se insinuava algum tipo de acordo com o ser no pensamento da esquerda, viver é firmar algum tipo de acordo com o ser (pela simples razão de que não nos matamos), nesse sentido se insinua mesmo um acordo, mas não é acordo categórico com ser do Kundera, porque este se requer condições claras:

1º) Por trás dele deve estar o primeiro capítulo do Gênese;

2º) É preciso crer que o mundo foi criado como devia ser;

3º) É preciso crer que o homem é bom.

Então discutimos coisas distintas. Argumento que marxistas e anarquistas não podem ser enquadrados na definição do Kundera, e isso pela simples razão de que não defendem que o mundo tenha sido criado e que exista uma natureza humana. Boa sacada a sua: o capítulo primeiro do Gênese é realmente consequência do acordo categórico com o ser. Mas não era exatamente isso que eu estava discutindo, disse que lançar marxismo e anarquismo na definição do Kundera significa falsificar ambos, nem um nem outro defendem a criação do mundo e a bondade inata do homem.  Por isso que, para mim, dizer que marxismo e anarquismo firmam o acordo categórico com o ser, a partir da definição do Kundera, equivale a falsificar princípios de ambos.

Sobre o acordo categórico com o ser, gostaria de registrar que, do revolucionário ao homem do subsolo, sempre se insinua algum tipo de acordo, ainda que não o definido pelo Kundera. Só não se insinua acordo no caso do suicida incondicional, ou suicídio filosófico, que é como definia o Camus, que também dizia não ter notícia de nenhum suicídio deste tipo.

Os homens reunidos em sovietes, assembleias, partidos e outros mecanismos partem de um princípio: viver é preciso. É também por isso que se reúnem. É legítimo que assim seja: um homem não precisa dos outros para morrer, mas precisa dos outros para viver, e por isso se organiza. O suicida não precisa do aval de terceiros para se matar, e que bom que seja assim. Voltando. Se creio que viver é preciso, realmente se insinua algum acordo, ainda que não seja o do Kundera. Por outro lado, se creio que viver não é preciso, ou melhor dizendo, se creio que a vida é a própria merda, só me resta a autodestruição, viver, neste caso, significa não ter coragem para rasgar um contrato.

Camus não conheceu nenhum suicídio filosófico, não conheceu ninguém que afirmasse ter se matado por achar a vida uma merda (merda no sentido do Kundera). Neste ponto o finado Souzalopes foi genialmente preciso: “Os suicidas buscam a v-ida ao contrário”. Ou seja, há sempre uma condição: uma dívida impagável, um amor perdido etc, etc. O suicida filosófico buscaria a morte de frente (e não a vida ao contrário), porque, ele sim, está em desacordo categórico com o ser.

Vale dizer que Camus escolhe a vida, Kundera idem; então, também no caso deles se insinua algum acordo com o ser, repito: ainda que não exatamente aquele definido no romance. Creio que o pomo da nossa discórdia é exatamente esse, continuo achando mistificação lançar marxismo e anarquismo na definição de acordo categórico com o ser, tenho dificuldade de imaginar que Kundera faça isso, enquadrar a burrocracia estalinista na definição é tranquilo, fazer o mesmo com o marxismo e o anarquismo é mistificar.

Já registrei que pode haver e provavelmente há kitsch na esquerda, mas repito que não é pela via do acordo categórico com ser (na definição do Kundera). Baixei materiais sobre o kitsch, inclusive Apocalípticos e Integrados, do Humberto Eco, quero ler esses textos para depois repensar a questão. Por exemplo: forçando posso até dizer que há algum kitsch no poema do Brecht (Aos que vão nascer), mas não o enxergo onde você o viu, para mim o problema está menos no pedido de complacência do poeta e mais nos últimos versos: “Mas vós, quando chegar a ocasião de ser o homem um parceiro do homem, pensai em nós com simpatia.” A questão é que o tempo do homem ser parceiro do homem pode não chegar, e o poeta parece não relevar essa possibilidade. Então, o suposto kitsch de Brecht não está no seu acordo categórico com o ser, não na definição do Kundera.

Discutimos muito o parágrafo que define o acordo categórico com o ser, mas imediatamente antes está um trecho que passou quase batido: “O debate entre os que afirmam que o universo foi criado por Deus e aqueles que pensam que o universo apareceu por si mesmo implica coisas que vão além da nossa compreensão e aparência. Muito mais real é a diferença entre aqueles que contestam a existência tal como foi dada ao homem (pouco importa como e por quem) e aqueles que aderem a ela sem reservas.” Ou seja, podemos pensar no kitsch como a doença dos que aderem às coisas (não só à vida) sem reservas, por esse caminho dá para tentar enquadrar Brecht no kitsch, já que ele adere, aparentemente sem reservas, à crença num tempo em que o homem será parceiro do homem. Mas repito a sua ressalva: cobrar isso da poesia é complicado. Enfim, pretendo fazer outras leituras para aprofundar melhor.

Aproveito para registrar que não concordo que Nietzsche relativize valores, antes pelo contrário, a transvaloração de todos os valores é o contrário da relativização. Mas se formos seguir por essa vereda sairemos do tema.

A leveza é uma condição da existência, a vida é leve porque não se repete. Como lidamos com isso é uma outra questão, podemos buscar a leveza ou o peso, é por esse duplo caráter que a contradição peso x leveza se torna tão misteriosa e tão ambígua.

Forte abraço,
JC

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