* Nota preliminar:
este texto é parte do debate sobre o livro A insustentável leveza do ser, de
Milan Kundera. Os textos anteriores podem ser acessados aqui: Polêmica (A insustentável leveza do ser)
Li duas vezes seu Último Samba, mas não elaborei
nenhuma resposta e nem retornei nada, por isso envio esta mensagem (mais um
retorno do que uma resposta, porque sem grande elaboração). Já escrevi num
desses textos que foi útil essa polêmica, o exercício de compreensão do
pensamento do outro e de expressão do próprio é interessante. Por exemplo, só
agora compreendi (ou acho que compreendi) porque você afirmou, lá no começo,
que se insinuava algum tipo de acordo com o ser no pensamento da esquerda,
viver é firmar algum tipo de acordo com o ser (pela simples razão de que não
nos matamos), nesse sentido se insinua mesmo um acordo, mas não é acordo
categórico com ser do Kundera, porque este se requer condições claras:
1º) Por trás dele deve estar o primeiro capítulo do
Gênese;
2º) É preciso crer que o mundo foi criado como devia
ser;
3º) É preciso crer que o homem é bom.
Então discutimos coisas distintas. Argumento que
marxistas e anarquistas não podem ser enquadrados na definição do Kundera, e isso
pela simples razão de que não defendem que o mundo tenha sido criado e que
exista uma natureza humana. Boa sacada a sua: o capítulo primeiro do Gênese é
realmente consequência do acordo categórico com o ser. Mas não era exatamente
isso que eu estava discutindo, disse que lançar marxismo e anarquismo na
definição do Kundera significa falsificar ambos, nem um nem outro defendem a
criação do mundo e a bondade inata do homem. Por isso que, para mim, dizer que
marxismo e anarquismo firmam o acordo categórico com o ser, a partir da
definição do Kundera, equivale a falsificar princípios de ambos.
Sobre o acordo categórico com o ser, gostaria de
registrar que, do revolucionário ao homem do subsolo, sempre se insinua algum
tipo de acordo, ainda que não o definido pelo Kundera. Só não se insinua acordo
no caso do suicida incondicional, ou suicídio filosófico, que é como definia o
Camus, que também dizia não ter notícia de nenhum suicídio deste tipo.
Os homens reunidos em sovietes, assembleias, partidos
e outros mecanismos partem de um princípio: viver é preciso. É também por isso
que se reúnem. É legítimo que assim seja: um homem não precisa dos outros para
morrer, mas precisa dos outros para viver, e por isso se organiza. O suicida
não precisa do aval de terceiros para se matar, e que bom que seja assim.
Voltando. Se creio que viver é preciso, realmente se insinua algum acordo,
ainda que não seja o do Kundera. Por outro lado, se creio que viver não é
preciso, ou melhor dizendo, se creio que a vida é a própria merda, só me resta
a autodestruição, viver, neste caso, significa não ter coragem para rasgar um
contrato.
Camus não conheceu nenhum suicídio filosófico, não
conheceu ninguém que afirmasse ter se matado por achar a vida uma merda (merda
no sentido do Kundera). Neste ponto o finado Souzalopes foi genialmente
preciso: “Os suicidas buscam a v-ida ao contrário”. Ou seja, há sempre uma
condição: uma dívida impagável, um amor perdido etc, etc. O suicida filosófico
buscaria a morte de frente (e não a vida ao contrário), porque, ele sim, está
em desacordo categórico com o ser.
Vale dizer que Camus escolhe a vida, Kundera idem;
então, também no caso deles se insinua algum acordo com o ser, repito: ainda
que não exatamente aquele definido no romance. Creio que o pomo da nossa
discórdia é exatamente esse, continuo achando mistificação lançar marxismo e
anarquismo na definição de acordo categórico com o ser, tenho dificuldade de
imaginar que Kundera faça isso, enquadrar a burrocracia estalinista na
definição é tranquilo, fazer o mesmo com o marxismo e o anarquismo é
mistificar.
Já registrei que pode haver e provavelmente há kitsch
na esquerda, mas repito que não é pela via do acordo categórico com ser (na
definição do Kundera). Baixei materiais sobre o kitsch, inclusive Apocalípticos
e Integrados, do Humberto Eco, quero ler esses textos para depois repensar a
questão. Por exemplo: forçando posso até dizer que há algum kitsch no poema do
Brecht (Aos que vão nascer), mas não o enxergo onde você o viu, para mim o
problema está menos no pedido de complacência do poeta e mais nos últimos
versos: “Mas vós, quando chegar a ocasião de ser o homem um parceiro do homem,
pensai em nós com simpatia.” A questão é que o tempo do homem ser parceiro do
homem pode não chegar, e o poeta parece não relevar essa possibilidade. Então,
o suposto kitsch de Brecht não está no seu acordo categórico com o ser, não na
definição do Kundera.
Discutimos muito o parágrafo que define o acordo
categórico com o ser, mas imediatamente antes está um trecho que passou quase
batido: “O debate entre os que afirmam que o universo foi criado por Deus e
aqueles que pensam que o universo apareceu por si mesmo implica coisas que vão
além da nossa compreensão e aparência. Muito mais real é a diferença entre aqueles
que contestam a existência tal como foi dada ao homem (pouco importa como e por
quem) e aqueles que aderem a ela sem reservas.” Ou seja, podemos pensar no
kitsch como a doença dos que aderem às coisas (não só à vida) sem reservas, por
esse caminho dá para tentar enquadrar Brecht no kitsch, já que ele adere,
aparentemente sem reservas, à crença num tempo em que o homem será parceiro do
homem. Mas repito a sua ressalva: cobrar isso da poesia é complicado. Enfim,
pretendo fazer outras leituras para aprofundar melhor.
Aproveito para registrar que não concordo que
Nietzsche relativize valores, antes pelo contrário, a transvaloração de todos
os valores é o contrário da relativização. Mas se formos seguir por essa vereda
sairemos do tema.
A leveza é uma condição da existência, a vida é leve
porque não se repete. Como lidamos com isso é uma outra questão, podemos buscar
a leveza ou o peso, é por esse duplo caráter que a contradição peso x leveza se
torna tão misteriosa e tão ambígua.
Forte abraço,
JC
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