* Nota preliminar:
este texto é parte do debate sobre o livro A insustentável leveza do ser, de
Milan Kundera. Os textos anteriores podem ser acessados aqui: Polêmica (A insustentável leveza do ser)
Caro JC..
O Acordo Categórico Com o Ser em Kundera é, como a
expressão que lhe corresponde, uma afirmação do ser e, evidentemente, da vida.
Isso para mim é mais e bem mais do que claro, se há uma divergência sua quanto
a esse detalhe fundamental seria bom se pudesse esclarecer.
Argumentei e citei trechos do livro que considero
fundamentar meus argumentos para explicar que o Acordo Categórico é quem está
por trás do Gênese, e não o contrário. Essa ideia não é minha, é do próprio
Kundera, é assim que penso que os trechos do livro citados por mim esclarecem
muito bem. Os princípios do Gênese que Kundera cita servem exatamente para
explicar o kitsch que legitima o Acordo Categórico Com o Ser, ou seja, a
afirmação do ser e não sua negação. Isso eu penso ter respondido com citações
do próprio Kundera, que não termina a explicação do conceito do Acordo
Categórico no Gênese, continua a desenvolver a ideia mais adiante e, inclusive,
num parágrafo todo onde narra um desfile do 1º de maio e lá distingue o Acordo
Categórico Com o Ser, um acordo
com o ser enquanto tal, de sua forma, o desfile do primeiro de maio: a
palavra de ordem do desfile é “viva a vida”, e não “viva o comunismo”. Como em
todo apelo das organizações de esquerda, das igrejas, dos partidos e dos
movimentos políticos, à direita e à esquerda, as massas.
Portanto:
Acordo Categórico Com o Ser = acordo com o ser
enquanto tal (afirmação fundamental do ser).
Gênese = Kitsch, forma pela qual se afirma o ser,
forma atrás da qual escondemos aspectos indesejáveis desse ser. Essa forma tem
os seus princípios, ou seja, o homem é bom, o mundo foi criado como deveria
ser, etc.
Por isso não discutimos coisas distintas, creio que
compreendi seu argumento, que nega que marxistas e anarquistas possam ser
enquadrados na definição de Kundera. Ocorre que a definição de Kundera, a meu
ver, é essa afirmada acima por mim, e não se trata meramente de uma compreensão
arbitrária de minha parte, tanto que exemplifiquei com citações do próprio
Kundera. Se você discorda, ok, mas então é necessário me apontar meu equívoco
na interpretação, afinal, seu argumento é justamente e exatamente o que neguei
em meu último texto. Se você acha que lançar marxismo e anarquismo na definição
do Kundera significa falsificar ambos, então você continua achando que o Gênese
é o fundamento do Acordo Categórico, quando é exatamente o contrário e é o que
penso ter demonstrado a partir do próprio Kundera. É aqui que é preciso
desenrolar o novelo. Repetindo para engessar a ideia: Kundera não afirma o Gênese como
fundamento do Acordo Categórico, mas faz exatamente o contrário. Para que
você sustente que Kundera afirma o Gênese como fundamento é preciso
exemplificar.
Sobre o acordo categórico, concordo com você. É por
isso que Kundera afirma repetidamente que a fraternidade entre todos os homens
não poderá ter outra base senão o kitsch: porque sempre se insinua algum tipo
de acordo, porque a vida, perfeita ou imperfeita, é inevitável. Os homens reunidos em grupos, que
partem do princípio de que viver é preciso (absolutamente natural que assim
seja), precisam igualmente corrigir a vida para permiti-la, e é desse ofício
que brotará o kitsch. Esse acordo, de que viver é preciso, é exatamente o de
Kundera, acordo com o ser
enquanto tal. Ou seja: enquanto SER.
Acreditar que viver não é preciso não é o mesmo que
acreditar que morrer é necessário. Viver não é preciso, mas ninguém, a despeito
de poder morrer, a rigor, quando bem quiser, tem escolha. Morrer, antes de ser
uma opção, é uma condição. Camus não conheceu nenhum suicídio filosófico, mas
eu afirmo, com certa tranquilidade de consciência, que eles aconteceram. Não
importa se soubemos ou não. Chegar à conclusão de que viver é uma completa
inutilidade dolorosa coloca qualquer um a beira do suicídio, e não há como
afirmar que tantos não o fizeram. Mas nosso amigo Souzalopes estava
certo...normalmente, em suas amplas razões, os suicidas buscam mesmo uma vida
ao contrário.
A partir da definição de Kundera, não há dúvida que
entre ele e Camus se insinua algum acordo com o ser. Mas é exatamente a partir
daquele definido no romance, um acordo que não tem e nunca teve como fundamento
o Gênese.
O menor dos problemas da burrocracia stalinista é o
kitsch, seu mal foi muito maior. O kitsch é um dado da existência, está no bem
e está no mal, no marxismo, no stalinismo, no anarquismo, no fascismo, na
religião, em tudo. Sem mistificações.
O kitsch é a máscara com que se afirma o acordo com o
ser. É a máscara que encobre aspectos problemáticos, críticos, a ponto de serem
indesejáveis. É somente isso o que vi no belo verso de Brecht: ao receber
críticas, ao invés de encará-las ou respondê-las, faz um apelo a sua
própria bondade: não é outra coisa senão o profundo acordo categórico com o ser
e o kitsch kunderianos.
O trecho do parágrafo que cita sobre a definição do
acordo categórico com o ser não passou despercebido por mim, sobretudo quanto
diz que “(...) muito mais real é a diferença entre aqueles que contestam a
existência tal como foi dada ao homem (pouco importa como e por quem) e aqueles
que aderem a ela sem reservas.” Pouco importa como, por que e por quem.
Sobre Nietzsche, está correto que a transvaloração dos
valores é o contrário da relativização dos valores. Ocorre que Nietzsche, para
chegar até aí, passou pela denúncia da relativização de todos os valores, teve
de entender a construção histórica de todos os valores e de toda a moral
(especificamente da tradição judaico-cristã). Conforme ele afirmou sobre o que
seja a verdade, “um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos,
enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e
retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um
povo sólidas, canônicas e obrigatórias: verdades são ilusões, das quais se
esqueceu que o são." Nietzsche foi o precursor da pós-modernidade quando
colocou em questão o valor dos valores. A partir daí, da compreensão dos
valores como construção histórica e por isso mesmo relativos, é que afirmará a
transvaloração dos valores, a imposição de novos valores, negação da tradição
moral judaico-cristã.
Bem, fico por aqui também...
Abraços do camarada
Olavo
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