CARTA PARA CARLOS
DRUMMOND DE ANDRADE
Carlos, hoje é 31.10.
Dia do halloween nas escolas de capitulação. Dia do Saci nas escolas de
resistência. Mas te escrevo porque aniversarias, nasceste em Itabira/MG,
em 31.10.1902. Tomo a liberdade de utilizar teus versos.
Às vezes desejavas
“por fogo em tudo”, inclusive em ti, “ao menino de 1918 chamavam anarquista”,
teu ódio é libertador. Outras vezes desejavas “viver para sempre e esgotar a
borra dos séculos”. Mas, por “haver disposto o essencial, deixando o resto aos
doutores de Bizâncio”, voaste “para nunca-mais” em 17.08.1987. Eu tinha 8 anos,
não te conhecia, apesar do “e agora, José?” que minha mãe pronunciava nas horas
de dificuldade.
Houve um tempo,
Carlos, em que foste uma pedra no meu caminho, como se a poesia só estivesse
contigo, como se a palavra poeta só valesse para ti, mas passou. Aprendi a
gostar do chileno Neruda, do maranhense Gullar, do pernambucano Cabral, do
pantaneiro Manoel de Barros... Melhor assim. O Brasil é mesmo cheio de poetas e
de pedras no meio do caminho: Itanhaém (a pedra que canta), Itaporanga (a pedra
bonita), Itatinga (a pedra branca), Itapoema (a pedra da poesia?), Itabira (a
pedra que brilha)...
Estive em Itabira novamente,
tua casa-museu estava fechada para reformas. Certa vez um vigia me disse que
havia uma pedra no meio da rua, entre a tua casa e a escola em que estudaste.
Foi por isso que escreveste “No meio do caminho”? Tudo tão simples? Os
“doutores de Bizâncio” e das academias perderam tanto tempo e não enxergaram o
óbvio? Uma simples pedra no meio do caminho da escola e nada mais? Toneladas de
análises e nada? Ou a história da pedra no meio da rua foi um gracejo do vigia
do museu? Aquele vigia era uma espécie de Tutu Caramujo do século XXI?
Foste um “anjo
torto”, Carlos, um zombeteiro que ria da academesmice. A Academia Brasileira de
Letras (ABL) deve te homenagear hoje, Carlos, e eu fico rindo porque recusaste
a ABL e a imortalidade, com teus braços magros, mandaste uma banana para os
imortais.
Mas nem tudo é riso,
ou melhor, o riso é pouco, o riso é parco. Preciso falar de dor e lamento.
Carlos, as mineradoras limaram o brilho das pedras e cortaram os morros da tua
cidade. Itabira é uma pedra retalhada. Minas desaparece de baixo do pó da
mineração, “Minas não há mais”. O pó cobrirá os profetas do Aleijadinho e as
igrejas de Ouro Preto.
“O tempo é ainda de
fezes, maus poemas, alucinações e espera.” “Não veio a utopia”. Não veio o
tempo da vida sem mistificações. Nenhuma flor nasceu na rua. O homem não
liquidou a bomba. “A noite desceu. Que noite.” “A noite dissolve os homens”.
Dezenas de homens executados todas as noites nas capitais do país. Os
esquadrões da morte tomaram as ruas, tomaram as noites. “Existe apenas o medo”.
“O medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o
medo das mães, o medo das igrejas.” E o medo da morte, o medo dos esquadrões da
morte. Uma rua começa no Rio de Janeiro e vai dar no cemitério, por esta rua
passam meus irmãos. “Haveremos de
amanhecer”? Quando? Teremos que adiar a felicidade coletiva por mais um século?
Carlos, e agora?
Um comentário:
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?
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