* Nota preliminar: este texto é parte do debate sobre o romance A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. Os textos anteriores podem ser acessados aqui: Polêmica (A insustentável leveza do ser)
Tentemos desenrolar o novelo. O pomo da nossa discórdia está num parágrafo que já conhecemos de cor:
“Por trás de todas as crenças européias, sejam
religiosas ou políticas, está o primeiro capítulo do Gênese, a ensinar que o
mundo foi criado como devia ser, que o ser humano é bom e que, portanto, deve
procriar. Chamemos essa crença fundamental de acordo
categórico com o ser.”
Kundera pode
ter se expressado mal, ou pode ter sido o tradutor, mas está muito claro: por
trás de todas as crenças europeias, sejam religiosas ou políticas, está o
primeiro capítulo do Gênese. Mas isso não importa muito, ou não importa tanto.
Concordo contigo, é o acordo categórico com o ser que explica o primeiro
capítulo do Gênese. Mas então, partindo de Kundera, podemos dizer que firma o
acordo categórico com o ser quem cumpre duas condições:
1º) Crê que o mundo foi criado como devia ser,
2º) Crê que o homem é bom e deve procriar.
Ou seja, posso retirar o primeiro capítulo do Gênese
da equação sem nenhum prejuízo. Não cheguei a afirmar isso, mas se tivesse sido
perguntado responderia com tranquilidade: são as duas condições acima que,
somadas, estão por trás do Gênese, e não o contrário.
Sabemos que, para o Kundera, o kitsch é o ideal
estético do acordo categórico com o ser. Se todas as crenças, religiosas e
políticas, firmam o acordo categórico com o ser, todas, sem exceção, são
produtoras de kitsch. Aqui o caldo entorna. Não se deve cobrar rigor analítico
da literatura, mas esta passa a produzir mistificações, não resta outra
possibilidade senão a crítica. Não creio que Kundera despeje marxismo e
anarquismo nesse caldeirão (como já registrei diversas vezes), e isso porque
seria muito fácil desconstruir o argumento dele. Seria como se ele dissesse:
Por trás do pensamento de Karl Marx está o primeiro
capítulo do Gênese, a ensinar que o mundo foi criado como devia ser, que o ser
humano é bom e que, portanto, deve procriar. Chamemos essa crença fundamental
de acordo categórico com o ser.
Uma formulação como essa é absurda com ou sem o
primeiro capítulo do Gênese, como já afirmei, Marx não crê que o mundo tenha
sido criado e não crê que o homem seja bom, para o filósofo alemão não há uma
natureza humana pré-determinada. O raciocínio vale para Marx e para Lukács,
Lenin, Trostki, Bakunin, Brecht, Malatesta etc., etc. É por isso que não dá
para dizer que há kitsch na esquerda, pelo menos não através da equação do
Kundera. Quem tenta afirmar o kitsch de esquerda via Kundera acaba formulando
algo parecido com a sentença absurda que montei no parágrafo anterior. Ou
dizendo de outra forma, acaba produzindo mistificações.
Certamente há kitsch na esquerda, deve haver no
pensamento de Marx inclusive, mas não é com uma definição limitada como a do
Kundera que se vai avançar na compreensão do fenômeno, acho pouco provável que
o próprio Kundera lance pensadores do porte de Marx na sua definição. Enfim, a
essência da nossa divergência é essa. Considero que lançar marxismo e
anarquismo na definição de acordo categórico é o mesmo que amputar um e outro,
é mais ou menos como querer passar uma carreta num buraco de rato. Lançar
marxismo e anarquismo na definição do Kundera é uma mistificação grande e
frágil, desemboca em coisas como a sentença que montei relacionando Marx ao
acordo categórico. Diferente seria se partíssemos de outro parágrafo:
“O debate entre os que afirmam que o universo foi
criado por Deus e aqueles que pensam que o universo apareceu por si mesmo
implica coisas que vão além de nossa compreensão e experiência. Muito mais real
é a diferença entre aqueles que contestam a existência tal como foi dada ao
homem (pouco importa como e por quem) e aqueles que aderem a ela sem reservas.”
Permita-me um chute. Esse aderir sem reservas é um
caminho melhor para entendermos o kitsch, inclusive para além das duas
condições que extraí do Kundera. Por exemplo: Marx aderiu (no mínimo com pouca
reserva) à ideia de que a revolução estava próxima, e caiu do cavalo. Brecht,
no poema Aos que vão nascer, adere
sem reservas à crença de que virá um tempo em que o homem será parceiro do
homem. É do aderir sem reservas que brota o kitsch, que não precisa ter apenas
fundo religioso, como na definição de acordo categórico com ser. O homem do
subsolo pode produzir kitsch se aderir incondicionalmente à visão de que a
existência é uma merda, ou seja, seu kitsch existirá para mascarar a doçura da
leveza, que é parte da vida também, e que ele pode não querer ver. Enfim, penso
no kitsch como ideal estético do acordo categórico em geral (não
necessariamente do acordo categórico com o ser, qualquer acordo categórico
produz kitsch, pode ser com o ser ou outro), ou seja, quem adere sem reservas a
seja lá o que for, do subsolo à revolução, vai expulsar para fora das
fronteiras do pensamento tudo que lhe contrariar. Pretendo um dia aprofundar
melhor isso, mas me parece que este caminho é mais sólido.
Também acho que devem ter ocorrido suicídios
filosóficos, o que não houve nem haverá é um filósofo sério do suicídio,
porque, se chega nesse ponto, o homem deve providenciar sua autodestruição e
não uma nova filosofia.
Lembro que a palavra de ordem “viva a vida” não está
muito distante do pensamento de Nietzsche e, se é assim, o filósofo alemão está
próximo do acordo categórico com o ser e do kitsch nos termos em que você os
entende. Lembremos do trecho em que Zaratustra fala dos que desprezam o corpo:
“Aos que desprezam o corpo quero dar o meu parecer. O
que devem fazer não é mudar de preceito, mas simplesmente despedirem−se do seu
próprio corpo e, por conseguinte, ficarem mudos.”
Este trecho e outros exemplificam por que não haverá
um filósofo sério do suicídio, toda sua filosofia não pode substituir o gesto
definitivo.
Registro que a palavra de ordem “viva a vida” não
necessariamente precisa ser elaborada a partir do acordo categórico com o ser
definido pelo Kundera (duas condições citadas no começo desta mensagem), haverá
sim algum tipo de acordo, mas não necessariamente será o mesmo, Nietzsche
exemplifica bem isso, seu “viva a vida” não é pronunciado pelo caminho do
acordo categórico formulado pelo Kundera.
Por fim,
digo que há no pensamento dos vivos (da esquerda ao homem do subsolo) algum
tipo de acordo com o ser, porque se não fosse assim eles caminhariam para a
autodestruição. Talvez o mais correto seja dizer que, da esquerda ao homem do
subsolo, insinua-se um acordo parcial com o ser, porque acordo categórico com o
ser só firma quem cumpre as duas condições apontadas acima. Já o kitsch pode
mesmo ser entendido como um dado da existência, e pode ser, se meu raciocínio
estiver correto, separado do acordo categórico com o ser. O kitsch é um fenômeno
que nasce do aderir sem reservas, por exemplo, o kitsch do homem do subsolo
pode ser a escuridão.
Forte abraço,
JC
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