* Nota preliminar: este texto é parte do debate sobre o romance A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. Os textos anteriores podem ser acessados aqui: Polêmica (A insustentável leveza do ser)
JC..
Quanto ao homem do subsolo, como eu disse em meu
último texto, não escapa da roda-viva, assim como ninguém escapa. E não entendi
exatamente qual o primeiro capítulo do Gênese de que pode prescindir sem
prejuízo do conteúdo...você usou as 3 exemplificações de Kundera do Gênese.
Sobre o Acordo Categórico com o Ser, me parece que
você não quer saber muito dos desdobramentos de Kundera sobre o conceito.
Novamente: A origem do kitsch
é o acordo categórico com o ser. Mas qual é o fundamento do ser? Deus? A
humanidade? A luta? O amor? O homem? A mulher? A esse respeito, existem várias
opiniões, assim como existem várias espécies de kitsch: o kitsch católico,
protestante, judeu, comunista, fascista, democrático, feminista, europeu,
americano, nacional, internacional.
Se você prefere pensar que Kundera se equivocou,
ou que há contradição na definição, não sou eu quem bancará o advogado do
escritor. Mas no trecho acima Kundera nega explicitamente que o Gênese seja o
fundamento do Acordo Categórico com o Ser. Porque, como ele mesmo afirma, a
esse respeito existem várias opiniões, cada uma com o seu acordo e com seu
kitsch.
Seu tipo de raciocínio conduz a um rigor excessivo (e
nocivo como tal) que, para ter coerência, precisaria entender que todas as
nominações que Kundera não incluiu em seu exemplo (católico, protestante,
judeu, comunista, fascista, democrático, feminista, europeu, americano,
nacional, internacional), não estão sob o Acordo Categórico com o Ser, e,
portanto, não produzem o kitsch. Todas as religiões africanas, asiáticas,
indígenas, o racismo, o xintoísmo e tudo o mais que lembrarmos que Kundera não
disse, não produzem o kitsch. Mas esse mesmo rigor, por mais esforço que faça,
não conseguirá negar que o autor incluiu em sua definição o marxismo, porque lá
está comunista, sem
distinções.
Para além disso, o parágrafo inteiro em que Kundera
descreve um desfile do 1º de Maio e exemplifica, com essa descrição, o Acordo
Categórico com o Ser, não nos autoriza a imaginar que ele tenha excluído o
marxismo ou o anarquismo, ou qualquer um que não afirme determinados
pressupostos do Gênese, do conceito. Afinal, porque ele o faria? Se esse acordo
tem por base o Gênese, tudo o que está fora dele, e não unicamente marxismo e anarquismo,
não produzem o kitsch. Se faz algum sentido na obra afirmações categóricas como
"a fraternidade entre todos os homens não poderá ter outra base senão o
kitsch" e "o kitsch é o ideal estético de todos os políticos, de
todos os partidos e de todos os movimentos políticos", como e por que é
ainda possível imaginar que Kundera exclua marxismo e anarquismo? Caberia
tamanha ingenuidade nesse grande escritor? Prender-se num trecho isolado onde
Kundera inicia a explicação do conceito, negando seus desdobramentos, é
reduzi-lo e mistificá-lo. Toda a idéia do conceito presente na obra, antes de
negar-se, se completam. Por isso é um romance, literatura, ensaio, e não um
tratado teórico, crítico e analítico. Extrai-se a ideia acabada do conceito da
obra toda, e não de um trecho minúsculo dela. Numa obra analítica, a ausência
do rigor do cálculo colabora para uma má compreensão, na obra literária é a
presença desse mesmo rigor que atrapalha. Medir o quanto de rigor é necessário
ou desnecessário é como tentar exigir o "bom-senso", essa bobagem que
não explica e nem resolve nada.
Essa aparente contradição inicial (sim, aparente
porque existem outras partes) para mim tem fácil explicação: o que Kundera
chama de Acordo Categórico com o Ser é um acordo com o ser enquanto tal, como ele
mesmo afirma, e o início da ideia é por ele mostrado com um típico exemplo
desse acordo: o Gênese. Esse não é o acordo, é apenas um acordo. Existem
vários (várias opiniões, e, portanto, vários tipos de kitsch). Pronto, sem
mistificações. É por isso que dá pra dizer que há kitsch na esquerda justamente
pela definição de Kundera. Foi ele mesmo quem afirmou o kitsch da esquerda por
essa via, e, portanto, se eu acaso estiver correto (de acordo com o autor) em
como entendi o conceito, sem mistificações.
Lançar marxismo e anarquismo na definição de Kundera
só é mistificação se você estiver certo e o conceito for unicamente aquele
isolado no início da ideia, coisa com a qual discordo frontalmente.
“O debate entre os que afirmam que o universo foi criado
por Deus e aqueles que pensam que o universo apareceu por si mesmo implica
coisas que vão além de nossa compreensão e experiência. Muito mais real é a
diferença entre aqueles que contestam a existência tal como foi dada ao homem
(pouco importa como e por quem) e aqueles que aderem a ela sem reservas.”
O que eu ressalto nesse parágrafo é justamente a ideia
que ele colocou entre parênteses: pouco importa como, por quê e por quem. Pouco importa como: se por métodos
divinos ou pela história; pouco importa por quê: se para o bem ou para o mal;
pouco importa por quem: se por Deus ou pelo homem.
Você tem razão o kitsch brota também do aderir sem
reservas. Mas como é que o kitsch deixa de brotar ao se aderir com reservas?
Para mim, o kitsch nasce da adesão, com ou sem reservas. Essas reservas, se
existirem, não poderão nunca por em xeque minha adesão, que, para ser adesão de
fato, precisa do kitsch (ou não virá nunca a ser adesão, permanecendo numa
condição de ‘nem lá e nem cá’). O kitsch, em Kundera, é esse. Por isso é o
ideal estético de todos os homens, de todos os partidos e de todos os
movimentos políticos e a condição para a fraternidade.
Acho que foi Nietzsche quem disse que o filósofo prega
com o exemplo. E assumo a responsabilidade de dizer que talvez (talvez) tenha
sido por isso que ele criou uma filosofia do “viva a vida” ao invés de uma
filosofia da morte. Nunca saberemos. E é claro que há o acordo categórico e o
kitsch em Nietzsche, de acordo com o que entendi por isso em Kundera. Eu nunca
achei que os grandes homens que admiro tivessem conseguido escapar dele. Ou
melhor, já achei, um dia. Basta-se estar vivo.
Acho que no conceito do Acordo Categórico com o
Ser, a expressão “categórico” existe porque é, antes de mais nada, um acordo do
qual não se pode fugir a
priori, muito menos impor-lhe cláusulas. Quando por fim percebemos, já
estamos vivos, já estamos kitsch.
abraços
fraternos...
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