MULHERES
Maria, das
muitas que rolam pelo mundo.
Maria
pobre. Não tem casa nem morada.
Vive como
quer.
Tem seu
mundo e suas vaidades.
(Cora
Coralina)
I
Vila Bela é cercada por serras e cortada por rios. As águas
escorrem pela mata, lambem as pedras, matam a sede dos bichos, formam o Rio
Claro. Os verões são chuvosos. Os inversos são secos. Fauna e flora são fartas.
O calor é espesso e paralisante. Nas horas mais quentes os homens, as mulheres
e os animais se refugiam nas sombras. As chuvas são concentradas e volumosas, é
quando o Rio Claro encorpa.
A agonia de Vila Bela começou com a fundação, pouco tempo depois
que o primeiro bandeirante encontrou ouro no leito do Rio Claro. A notícia se
espalhou rapidamente. Bandeiras já haviam se instalado em outros pontos do
país. Segundo a crença da época, havia riqueza no interior do continente.
Exploradores se valeram dos rios que correm para o interior e de antigas
trilhas para chegar a Vila Bela.
Os povos nativos foram escravizados e dizimados. Fugitivos,
aventureiros e religiosos não paravam de chegar a Vila Bela. Para garantir sua
parte no butim, a coroa portuguesa
enviou generais, superintendentes, ouvidores e juízes. A capela foi erguida,
derrubada e transformada na igreja da matriz, posteriormente. Cadeia, câmara e
pelourinho foram construídos. A cidade cresceu em volta do Rio Claro. As linhas
retas das casas contrastam com as curvas percorridas pelas águas. Praças e
pontes foram edificadas. Ruas foram dispostas em linha reta, ligavam os largos
e os logradouros públicos, às vezes passando sobre pontes. A casa de fundição
foi construída perto do quartel. Surgiram confrarias e irmandades, escritórios
e fontes, casas de comércio e de prostituição.
Com o avanço da mineração, exploradores trouxeram homens
escravizados para trabalhar nos garimpos. Eram forçados a perfurar as margens e
britar as pedras dos rios, sob pena de serem açoitados no pelourinho. Os
proprietários de escravos elegiam os oficiais municipais e davam ordens à força
pública, que não hesitava em prender e torturar os povos nativos e os homens
escravizados.
O Rio Claro foi violado, ficou turvo. Pedras foram reviradas.
Bancos de areia foram escavados. Os homens abriram veios e picadas nas margens.
Desviaram as águas. Barrancas foram cavoucadas. A autópsia do rio foi feita com
peneiras, vasilhas, enxadas e unhas. Foi quando teve início o levante das
águas. O Rio Claro era calmo e cristalino antes da chegada do garimpo, depois
escureceu, ficou revolto e vingativo, engoliu homens e animais de estimação, invadiu
o casario e as ruas, derrubou paredes e pontes, carregou móveis e utensílios
domésticos.
II
No auge da mineração e ao lado do Rio Claro foi construído o
Casarão. Ali moraram o Capitão-mor da Coroa Portuguesa e o Secretário do
Governo da Capitânia, nomes másculos e maiúsculos. Há muitos quartos e muitas
janelas, um porão, portas enormes e quintal vasto: com legumes, frutas, flores,
pássaros e uma nascente. As águas do Rio Claro margeiam o quintal. No auge da
mineração havia prataria e espelhos nas paredes do Casarão, na sala principal
um grande relógio indicava a passagem do tempo e dos homens.
Antes de se matar tomando veneno, para não ser preso e enviado a
Portugal por sonegação de impostos, um certo Joaquim Antunes teria enterrado
barras de ouro no porão da casa. O boato sobrevive há séculos.
Também morreu na casa um homem negro escravizado, Manoel Nascimento.
Fugiu do cativeiro, se refugiou no porão. Não se sabe com consentimento de
quem. Foi encontrado e cercado. Não se rendeu. Abriu a própria barriga à faca, morreu
com as vísceras nas mãos, como se as ofertasse aos perseguidores.
Tempos
depois. O porão foi usado para castigar crianças mal comportadas. Elas temiam
ficar sozinhas no cômodo pouco iluminado e frequentado por fantasmas.
Na segunda metade do século XIX, o Casarão foi adquirido por um
comerciante da região, Otávio Guimarães, que viveu no imóvel com a mulher e os
quatro filhos. A caçula veio ao mundo quando a escravidão havia sido abolida.
Foi a única que nasceu no Casarão. Já não existia ouro no Rio Claro e Vila Bela
empobrecia rapidamente.
Com esgotamento da mineração, muitos proprietários deixaram a
cidade, levando seus capitais e suas tropas de homens escravizados. Os povos nativos
tiveram certo alívio. As águas do Rio Claro desturvaram e se acalmaram. Igrejas
caíram. Casas imensas foram atravessadas por goteiras. Relógios enferrujaram. Espelhos
quebraram. Quintais foram fatiados. Sem renda, famílias desmembraram terrenos,
que foram vendidos e alugados. A cidade cresceu para trás. Mangueiras,
jabuticabeiras, goiabeiras foram cortadas para dar lugar a pequenos cômodos no
fundo dos sobrados, onde se instalaram ex-escravizados, em geral eram velhos e
doentes, pessoas que não davam o retorno requerido pelos senhores de escravos e
que não tinham condições para abandonar a cidade.
Os becos se reproduziram sem parar, como os ratos, atrás do casario.
Na frente, ruas retilíneas e fachadas que ostentavam riqueza dos tempos da
mineração, com janelas vastas e cortinas claras. No fundo, becos estreitos e
curvos, com cômodos apertados e portas remendadas, legado da miséria
escravista.
As casas de Vila Bela foram desenhadas com linhas retas. Os becos
cresceram de forma anárquica, sinuosos como os rios, as serras e os ventos. Com
o esgotamento do ouro, a economia regrediu. Casas de comércio e até de
prostituição foram fechadas. As pessoas se alimentavam de pequenos animais,
peixes e frutas das árvores que sobreviveram nos quintais dos sobrados, às
vezes entre ruínas e cascalho.
Foi quando Otávio Guimarães dobrou a aposta nos negócios que herdara
do pai. Na crise muitos perdem, mas alguns ganham – dizia. Os Guimarães
enriqueceram vendendo para exploradores, aventureiros, religiosos e senhores de
escravos. Comercializavam alimentos, roupas, animais e até ferramentas
utilizadas nos garimpos. Chegaram em Vila Bela na primeira metade do século
XVIII, com o esgotamento do ouro e a quebradeira que veio depois, Otávio
Guimarães vislumbrou a possibilidade de ampliar os negócios. Não fatiou o
quintal do Casarão nem alugou quartos. Aquela casa deveria ser, para sempre, a
residência dos Guimarães. Tinha convicção de que prosperaria. Trouxe
professores de arte e de francês para ensinar as crianças. Apoiou o partido liberal.
Adquiriu comércios insolventes. Ampliou os negócios. Comprou e revendeu
fazendas e imóveis.
III
Quando pequenos, os irmãos brincavam no quintal: corriam na terra,
subiam nas mangueiras, escondiam-se nas sombras, refrescavam-se na nascente. A
caçula, Laura Guimarães, era ensimesmada. Preferia desenhar e ler. Lia tudo que
podia. Passava horas desenhando. Frequentava a biblioteca da cidade. Cedo registrou
impressões num diário, que escondia no porão. Com 15 anos enviou um poema para
um concurso literário. Quando o pai ficou sabendo, entrou em contato com a
comissão organizadora e mandou retirar o trabalho da filha, que ameaçou fugir e
ficou uma semana sem comer.
Crescidos, os filhos da família Guimarães seguiram caminhos previsíveis.
O irmão ajudava o pai nos negócios. As irmãs namoravam homens de famílias razoavelmente
abastadas. Laura Guimarães sabia o que o destino lhe reservava. Seria
apresentada e casada com algum homem influente. Tinha asco dos bailes
organizados pelo pai. Queria fugir. Mas não tinha sequer saído de Vila Bela.
Ia, no máximo, do Casarão para as fazendas da família, nos finais de semana.
Conhecia o mundo pelos livros, apenas. Não sabia ao certo o que queria. Sabia
exatamente o que não queria. Não casaria com um vilabelense provinciano e
ignorante.
Fernando Bretas advogava no Rio de Janeiro. Era um homem com
futuro profissional. Representava os principais fazendeiros do país. Visitar clientes
no interior era parte do negócio. Passava dias em trens e no lombo de cavalos.
Demorou uma semana para chegar em Vila Bela. Foi recebido pessoalmente por
Otávio Guimarães, que hospedou o visitante num dos quartos do Casarão. Fernando
Bretas avaliou o preço e a documentação da fazenda que o comerciante Otávio
Guimarães compraria do comendador
Olegário Gomes.
Na primeira noite do advogado em Vila Bela, o comerciante mandou
abater e assar uma leitoa. Fernando Bretas jantou com a família Guimarães. Para
o dia seguinte, o patriarca designou dois cavalos e um funcionário para passear
com o visitante pela região. Queria mostrar as riquezas e a opulência do lugar.
Mas não foram as serras, nem o casario colonial, nem o Rio Claro,
nem as fazendas que chamaram a atenção do advogado. Ele disfarçava cada vez
menos os olhares que direcionava para Laura Guimarães. Tentava evitar, mas não
conseguia distrair os instintos. Ela não tinha 18 anos. Ele era homem feito.
Mas quando ela acariciava as coxas para ajustar o vestido e sentar, ele não
conseguia deixar de olhar fixamente. Imaginava os traços principais do corpo
dela. Pensou em convidá-la para um passeio.
No início, os olhares de Fernando Bretas incomodaram Laura
Guimarães. Mas acostumou-se. Ele a fixava como se fosse um caçador. Ela não
correspondia aos olhares do advogado. Mas alisava os cabelos e acariciava as
coxas para ajustar o vestido. Seduzir aquele homem se tornou, para ela, uma possibilidade.
Era uma forma de se vingar de Vila Bela, do pai e dos bailes que aconteciam no
Casarão.
Na única vez em que Laura Guimarães correspondeu aos olhares de
Fernando Bretas, estavam no quintal do Casarão. Ele contemplava as árvores
frutíferas. Ela passou e foi sentar-se no banco, a poucos metros dali.
Olharam-se por segundos. Até que ela seguiu para o porão e ele foi atrás. Sem
palavras, segurou-a pela cintura e a apertou contra a parede. Beijou-lhe a boca
e o pescoço. Lambeu-lhe o rosto. Colocou a coxa entre as coxas dela, com força.
Ela se desvencilhou e saiu.
O advogado ficou no Casarão mais alguns dias. Fernando Bretas e
Laura Guimarães não voltaram a se tocar, nem trocaram palavras ou olhares. Ela
evitava os olhos dele. Ele procurava os olhos dela. Seguia-a com o olhar.
Insistia. Ela não retribuiu. Fernando Bretas fez a viagem de volta pensando na
filha caçula da família Guimarães. Ela também pensava nele. Parecia corajoso e
decidido. Pouco tempo depois, começaram a se corresponder. Fernando Bretas
escrevia sobre fatos sucedidos na capital do país. Laura Guimarães escrevia
sobre o tédio que sentia nos bailes que ocorriam no Casarão. Ele tinha ciúmes
dos homens vilabelenses. Imaginava ela nos braços de outro. Sofria. Ela queria
respirar novos ares. Imaginava a vida na cidade grande. Sonhava.
As
pequenas confissões avançaram para declarações de amor. Ele se comprometia a
pedir a mão dela ao pai, formalmente. Viveriam no Rio de Janeiro, ou, talvez,
em Vila Bela. Ele transferiria o escritório para a cidade. Ela não queria
esperar nem contar com a complacência do pai. Se a amava de verdade, que a
levasse para a capital do país. Ele via nela o esteio de fixação na vida adulta.
A superação das aventuras fugazes. A realização. A maturidade. Os filhos. A
família. Ela via nele a chance de se libertar de Vila Bela, do pai e dos bailes
que aconteciam no Casarão. O novo a atraía.
Foi numa noite clara de primavera. Fernando Bretas esperou Laura
Guimarães atrás do Casarão, num dos muitos becos de Vila Bela. No horário
combinado, ela apanhou os poucos pertences que levaria, atravessou o quintal e
encontrou com ele. Beijaram-se com pressa e ganharam o mundo. Atravessaram
cidades e estradas antes de chegar ao Rio de Janeiro. Ela deixou uma carta, escreveu
que conheceria outros lugares e que voltaria. A família e a cidade renegaram
Laura Guimarães, que virou um nome proibido na região. O pai dizia preferir
reencontrar a filha morta, antes enterrá-la do que recebê-la de volta. Mas estava
certo de que, em breve, ela se arrependeria e voltaria.
Fernando Bretas rapidamente se deu conta de que não conhecia
alguns hábitos de Laura Guimarães. Manias que ele não imaginava e que não haviam
sido informadas nas cartas que trocaram. Ela pedia livros e jornais. Instalou
um ateliê num dos cômodos da casa. Passava as tardes e as noites pintando. Ele
não se incomodava e se orgulhava do talento da mulher. Até que Laura Guimarães
passou a fazer contatos e a freqüentar grupos de artistas. Não raro era a única
mulher nas rodas e nos cafés. Há uma foto antiga, com poetas da época, em que
ela é a única mulher, aparece ao fundo, como se fosse alguma desavisada que
tivesse se metido no retrato por engano, atrapalhando um registro que ficaria
para a posteridade.
A situação começou a incomodar Fernando Bretas. Liberalismo tem
limites – pensava. Uma mulher pintar vá lá, mas frequentar grupos de artistas e
receber homens em casa... Refletiu e decidiu. Conversaria com ela. Mediu as
palavras. Deu tempo ao tempo. Procurou-a. Depois de rememorar tudo que tinham
vivido, desde o encontro em Vila Bela até a chegada no Rio de Janeiro, projetou
o que teriam pela frente, especialmente as viagens e os filhos que fariam. Enfatizou
o quanto a amava. Mas ela precisava mudar. Porque não caía bem uma mulher
passar mais tempo no ateliê do que com o marido. Ela ouviu. Não respondeu. Nem
mudou de atitude. Pelo contrário, dobrou a aposta, naquela época vendeu seus
primeiros quadros.
Fernando Bretas ficou indignado. Refletiu e decidiu. Aquilo não
podia continuar. Conversaria novamente com a mulher. Calibrou as palavras e as
idéias. Falou sobre tudo o que tinham vivido e que viveriam, as viagens e os
filhos que fariam. Explicou que não tinha nada contra e até admirava os quadros
que ela pintava, apesar de serem um tanto sombrios. Mas ter uma mulher pintora,
que frequentava grupos de artistas e vendia quadros atrapalharia a carreira
dele. Como fariam para se manter caso os negócios dele fossem prejudicados. Ela
ouviu. Ele se irritou e sintetizou a mensagem em uma frase: “Ou a pintura ou
eu!”
Laura Guimarães não respondeu com palavras nem imediatamente.
Vendeu os trabalhos que havia concluído. Contou as economias. Fez contatos. Embarcou
para a Europa. Ficou um mês e meio no navio. Passava o tempo lendo, desenhando
e esboçando os trabalhos que realizaria quando se estabelecesse.
Numa manhã de verão. Fernando Bretas beijou Laura Guimarães e foi
para o escritório. Quando voltou, a casa estava limpa e organizada, mas sem os
pertences da mulher. Desesperou-se. Procurou os amigos dela. Mas não recebeu
notícias. Foi a delegacias e hospitais. Mas não a encontrou. Só havia uma
possibilidade. Laura Guimarães teria voltado para Vila Bela. Sem querer e sem
alternativas, escreveu para o pai dela. Foi a primeira notícia que a família
recebeu da filha. Mas ela não tinha voltado para Vila Bela.
Em Paris, Laura Guimarães seguiu o roteiro previsto. Instalou o
ateliê, se aproximou dos grupos de artistas e pintou. Os quadros chamaram a
atenção do público especializado. Ela pintava quase sempre com tons de preto e
vermelho. Pequenas cidades pretas cortadas por rios vermelhos. Mulheres pretas lavando
roupas vermelhas. Becos pretos com crianças vermelhas. Céu preto com pássaros
vermelhos. Lixeiras pretas reviradas e percorridas por ratos vermelhos.
Rapidamente se estabeleceu. Vendeu quadros e alugou um ateliê
maior. Participou das rodas de artistas, da boemia e dos movimentos da época.
Escreveu manifestos e colunas de jornal. Conheceu os cinco continentes. Expôs
em muitas cidades, inclusive algumas brasileiras. Recusou todos os convites
para expor em Vila Bela. Quando perguntavam sobre a cidade natal dela, dizia
que era do mundo. Residiu em Paris, Londres, Barcelona, Milão e Berlim. Morou
com escritores e intelectuais. Nos jornais era descrita como a pintora triste
dos trópicos.
Fernando Bretas escrevia para a Laura Guimarães sempre que lhe
descobria o paradeiro. Parabenizava a mulher pelo sucesso. Elogiava os
trabalhos dela... Dizia que estava arrependido... Aceitaria ela como ela era... Organizaria uma
exposição com trabalhos dela... Teriam filhos... Pedia desculpas... Que
voltasse logo... Queria visitá-la... Ela nunca respondeu. Fernando Bretas e a
família Guimarães recebiam notícias dela pelos jornais, apenas. Otávio
Guimarães morreu por aquela época, mas enquanto viveu, quando lhe mostravam
reportagens e matérias sobre a filha, dizia que não conhecia aquela mulher.
IV
Quando pequenos, brincavam nos becos de Vila Bela: entre lampiões,
prostitutas, malandros e animais de estimação. Ele era poucos anos mais velho
que ela. Ambos descendiam das mulheres e dos homens escravizados e trazidos
para Vila Bela no tempo do ouro. José da Silva foi pedreiro e, aos vinte e
cinco anos, tornou-se soldado da força pública. Maria Imaculada bordava, nunca
abandonou o ofício.
Ele se considerava um exemplo de que o trabalho enobrece o homem, de
que quem acredita sempre alcança, de que a ordem é fundamental e, sobretudo, de
que Deus é bom. Dizia, sempre, que o importante era amar o próximo, a
solidariedade, a pátria, o bem, a família, o trabalho, a ordem e Deus. Eram os
conselhos que dava aos garotos quando se tornou soldado. Havia mães que pediam
para José da Silva orientar os filhos. O soldado Silva contava sua história de
menino pobre do beco que conseguiu progredir, também falava dos homens de fibra
que haviam fundado Vila Bela, que encontraram ouro, que catequizaram os índios,
que expulsaram vagabundos, que construíram igrejas e capelas.
Maria Imaculada passava o tempo bordando. José da Silva às vezes
encontrava com ela nas ruas, praças e becos de Vila Bela. Interessou-se pela discrição
dela. Primeiro puxou conversa. Depois ofereceu doces que comprava especialmente
para ela. Até que tomou coragem e convidou-a para conhecer um lugar especial.
No dia seguinte caminharam pela estrada e entraram numa trilha
discreta e estreita. Alguns metros à frente havia quedas d’água e piscinas
naturais. Maria Imaculada não suspeitava que, um pouco acima de Vila Bela, o
Rio Claro formava paisagens tão deslumbrantes. José da Silva conhecia bem o local,
nadava e caçava naquela região. Contemplaram o cair da tarde, o pôr o do sol e se
tocaram pela primeira vez.
Casaram tempos depois. José da Silva usou as economias de que
dispunha para comprar uma pequena casa que ele próprio reformou. Maria Imaculada
seguiu bordando panos de prato, toalhas e peças do vestuário. De manhã cedo,
antes que ele saísse para o trabalho, ela já estava bordando. Ele fazia rondas
por ruas, largos, praças e nas margens do Rio Claro; parava para tomar água e café
nos bares da cidade; conversava com os comerciantes, farmacêuticos e doceiras.
Ela passava linha e agulha pelo tecido e reproduzia cenas naturais: águas
correndo entre pedras, pássaros no céu, animais domésticos, campos floridos,
fruteiras. Às vezes usava a tesoura para desmanchar horas de trabalho. Às vezes
apanhava pequenos objetos para decorar vestidos e blusas. Pedras, botões,
grampos, moedas e até sementes secas podiam compor os bordados dela. Tirava o
sustento das peças que bordava. Comprava tecido e linha. Vendia panos de prato,
toalhas e peças do vestuário. Andava com uma sacola, carregava tecidos, linhas,
agulhas, tesouras e bordados. Quase não conversava com as pessoas. Parecia
falar com os tecidos.
Problemas não demoraram a aparecer. José da Silva estava
convencido de que a mulher não devia frequentar o mercado municipal, o comércio,
as ruas e os becos da cidade desacompanhada. Não convinha. Não precisavam de
dinheiro. O salário como soldado e a renda dos bicos que fazia eram suficientes
para se manterem, não era muito, mas bastava, não precisavam se humilhar. A sacola
que ela carregava pelas ruas irritava profundamente o marido. Parecia uma
retirante fugindo da seca, uma morta de fome, uma mendiga e não uma dona de
casa simples, mas digna. Maria Imaculada não respondeu nem contestou o marido,
mas não acatou as ordens dele. A vida seguiu. Antes que ele levantasse da cama,
ela já estava trabalhando, bordava de domingo a domingo.
Os desgastes eram diários. Ele gritava. Ela se recolhia. Não
retrucava e não se convencia a abandonar o ofício. Um dia José da Silva exigiu
que Maria Imaculada o respeitasse: “pararia ou não com os bordados?” Como ela
ficou em silêncio, ele agarrou a mulher pelo vestido. Como ela insistiu no
silêncio, ele deu-lhe um tapa no rosto. Foi o primeiro. O som nauseabundo
percorreu o cômodo. Ela se recolheu. Ele saiu e tomou um porre. A partir
daquele dia o álcool e as agressões se tornaram comuns.
José da Silva tomava um trago e ia para casa ralhar com a mulher,
ou invertia a ordem das ações sem alterar o conteúdo das mesmas. Álcool e
agressões. Agressões, álcool, mais agressões. Os gritos e os tapas se sucediam.
Um dia foi da bodeguinha do beco para casa totalmente embriagado. Tropeçou nas
pedras do calçamento. Apoiou-se nos muros. Maria dormia. O homem chacoalhou a
mulher. Ela pararia com aqueles bordados ou não? Virou e puxou Maria para si. Rasgou-lhe
a roupa. Segurou-lhe os braços sobre a cabeça, pressionados contra a cama.
Deitou-se sobre ela. Colocou as coxas entre as coxas dela. Apertou-lhe o
pescoço. Bateu no rosto dela. Até que se virou para o lado e dormiu.
Maria
Imaculada se lavou com a pouca água disponível.
Recolheu os pertences que podia carregar e partiu. Caminhou sem destino pelos
becos da cidade e pela margem do Rio Claro. Andou até amanhecer.
V
Otávio Guimarães já estava morto. A filha caçula morava na Europa.
Os negócios da família tinham sido vendidos. Por falta de comprador, o Casarão
ainda pertencia aos irmãos Guimarães. Mas os cômodos estavam alugados para
homens, mulheres e até famílias. Maria Imaculada encontrou abrigo na casa
centenária. Como não havia quartos disponíveis, alugou o porão e passou a viver
ali. Rapidamente se estabeleceu. Decorou as paredes com pedras, grampos, moedas
e bordados. Passava os dias bordando no quintal, à sombra das árvores
frutíferas, perto da nascente.
José tentou obrigar Maria a voltar. Não conseguiu. Quando ele se
embriagava e ameaçava levar a mulher à força, os moradores do Casarão o
colocavam para correr. Ele dizia que traria a tropa para prender aquele bando
de vagabundos, e que a mulher não ficaria naquele chiqueiro. Mas não
concretizou a ameaça.
Laura Guimarães estava farta das vanguardas e das cidades européias,
a amigos escrevia contando que voltaria ao Brasil. Houve inclusive quem se
oferecesse para hospedá-la. A ninguém ocorreu que a pintora pudesse voltar para
Vila Bela. O que ela faria naquele fim de mundo? Na cidadezinha abandonada no umbigo
do país? Mas foi exatamente o que ela fez.
Despediu-se dos amigos que conheceu em mais de quatro décadas de
vida na Europa, doou a maioria dos pertences e rumou para Vila Bela.
Hospedou-se no único hotel da cidade. A princípio não sabia se seria apenas uma
visita casual ou um retorno definitivo. Reencontrou os irmãos. Conheceu os
sobrinhos. Trocou as rodas de amigos nos cafés da Europa pelas rodas de
sobrinhos nos quintais de Vila Bela. Reviu o Casarão e pensou que podia voltar
para lá. Reformaria o imóvel. Cuidaria do jardim. Instalaria o ateliê, uma
biblioteca e receberia os amigos.
Laura Guimarães informou aos irmãos que pretendia comprar o
Casarão. Topavam vendê-lo? Pagaria a parte de cada um e se mudaria para lá. O
comprador que não havia aparecido após o falecimento de Otávio Guimarães,
surgiu tempos depois, e era justamente a filha que o patriarca não reconhecia.
Ela ofereceu dinheiro a mais, cada irmão recebeu praticamente o valor da casa e
não a porcentagem a que tinha direito. Era uma forma de ajudar e começar a
repassar aos sobrinhos os recursos que ficariam com eles após a morte dela.
Os locatários foram notificados e tiveram o devido tempo para
deixar o Casarão. Só Maria Imaculada ignorou a notificação oficial e continuou
residindo no porão. Procurada pelo advogado e informada sobre a situação,
indagada se era o caso de adotar medidas judiciais ou arrancar a mulher à
força, Laura Guimarães optou por ir ao Casarão.
Abriu as portas duplas e enormes. A luz entrou com ela. Há tempos
não pisava no Casarão. Atravessou o corredor e os cômodos. Estavam
deteriorados. Não havia nem quadros nem espelhos nas paredes. Da cozinha
avistou Maria bordando no quintal. Aquela mulher parecia saída de um quadro da
pintora. Desceu os poucos degraus e foi até ela. Apresentou-se. Perguntou o
nome da outra e o que fazia. Trocaram poucas palavras. Laura Guimarães explicou
que voltaria a morar na casa e que Maria Imaculada devia se mudar. Havia sido
informada? Maria se afastou e continuou bordando. Laura observou os dedos ágeis
deslizando entre a linha e a agulha. Refletiu. Disse que se mudaria, mas que a bordadeira
podia continuar por lá até achar um local para morar.
Maria Imaculada encontrou José da Silva pela última vez na entrada
de serviço do Casarão. Ela voltava do mercado municipal. Ele se embriagava e
esperava. Quando Maria passou, José foi atrás. Abordou-a perto do portão. Ela
gritou. Ele puxou-a para si. Disse qualquer coisa. Ela tentou se desvencilhar.
Caiu gritando. Ele apertou-lhe o pescoço. Chacoalhava-lhe a cabeça. Gritava.
Laura Guimarães ouviu e correu. Xingou o homem. Ordenou que fosse embora. Ele
obedeceu. Laura socorreu Maria. Limpou os cortes e fez curativos. Preparou uma
refeição e convidou a bordadeira para dormir num dos quartos do Casarão. Maria
preferiu passar a noite no porão. A pintora não se opôs, mas pediu que a outra
passasse a utilizar a entrada principal da casa sempre que quisesse. Não precisava
entrar e sair pelos fundos.
José da Silva morreu tempos depois, diziam que de desgosto e de
cachaça. Mais de desgosto do que de cachaça. Houve quem culpasse a ex-mulher,
porque os problemas dele haviam começado quando ela saiu de casa. Um homem tão
bom... Tão querido... Por quê? Onde já se viu? Maria viveu por mais tempo, não
guardou mágoa do ex-marido nem dos que a acusavam de tê-lo matado. Apenas
sentiu-se livre da presença ameaçadora daquele homem.
Laura
Guimarães instalou o ateliê e a biblioteca no Casarão. Recebia intelectuais,
estudantes, professores universitários, críticos de arte, curiosos e diletantes
que convergiram para Vila Bela, todos interessados em conhecer a “pintora
triste dos trópicos”. Também recebia os sobrinhos e os irmãos. Apesar das
ordens dos pais para que evitassem a bordadeira, as crianças brincavam no
quintal, em volta de Maria. Laura Guimarães servia café, bolos e doces feitos
com as frutas da região.
Não foi tranquilo o retorno da pintora para Vila Bela. O passado
dela ainda era conhecido. Havia fugido. Não casou na igreja. Abandonou o marido
pouco tempo depois de fugir com ele. Havia magoado e desonrado o pai. Diziam
não haver valor nas cenas pobres pintadas em tons de preto e vermelho. Um
artista devia retratar o belo, e não a feiúra do mundo. A natureza, e não os
becos. Animais formosos, e não ratos e urubus. Havia também quem garantisse que
os homens que visitavam Laura Guimarães eram amantes dela. Outros sustentavam
que a pintora era amante da bordadeira. Por que razão alguém manteria aquela
maluca morando no porão? Os boatos corriam pelos becos, como as crianças e os
animais de estimação.
Maria
Imaculada quase não conversava, as poucas palavras que dizia eram genéricas.
Vendia bordados ou trocava-os por outros produtos. Às vezes prescindia totalmente
das palavras, os comerciantes e clientes a conheciam e faziam negócio sem muita
conversa. Foi, sobretudo, bordadeira. Dialogava com os tecidos, escrevia com a
agulha e a linha. Passava horas sentada nas margens do Rio Claro ou no quintal
do Casarão. Bordava nas sombras. Quando a noite descia subtraindo a luz e
impedindo o trabalho, Maria desfrutava o sono dos justos, no porão. De manhã,
quando os primeiros raios de sol penetravam pela abertura da parede, ela
despertava. Ia até a nascente, lavava o rosto, bebia água e bordava.
Laura
Guimarães e Maria Imaculada se aproximaram aos poucos. Quem visitava a pintora
às vezes comprava produtos da bordadeira, que ajudava como podia. Incluiu na rotina a compra de tintas e outros materiais, dava
recados e entregava a correspondência da pintora no correio. Quando Maria
circulava pela cidade era comum ser cercada por crianças que se divertiam
caçoando dela. Davam as mãos e formavam rodas entorno da bordadeira, sempre
tinham versinhos, rimas e melodias que inventavam para irritá-la:
Maria louquinha
Pega bicho-de-pé
Pra comer com farinha
[...]
Marcha Maria
Cabeça de bordado
Se não marchar direito
Apanha do soldado
As crianças caminhavam ao lado de Maria Imaculada. Cantavam e
marchavam como se fossem militares, balançavam os braços esticados. Ela não se
incomodava, até se divertia com as brincadeiras. Mas quando algum moleque
abusado lhe atrapalhava a passagem ou tentava mexer na sacola, ela reagia. Apanhava
pedras, mirava com cuidado e atirava para não acertar. Era incapaz de machucar
quem quer que fosse.
VI
Laura Guimarães deixou para os sobrinhos o dinheiro que ganhou
vendendo quadros. Mas registrou no testamento que o Casarão devia ficar para
Maria Imaculada. A bordadeira sobreviveu à pintora. Abria e limpava o quartos,
o ateliê e a biblioteca. Tirava o pó e deixava o sol entrar. Seguiu morando no
porão.
A prefeitura de Vila Bela precisou esperar a morte de Maria Imaculada
para transformar o Casarão no Museu Laura Guimarães. Obras da pintora foram adquiridas
e doadas para compor o acervo. Foi montado um espaço com as cartas que recebeu
e enviou, críticas recolhidas nos jornais, biografia, fotos raras do tempo que
passou na Europa e da família Guimarães, o patriarca inclusive. A biblioteca
foi aberta ao público. No quintal, um café divide espaço com as árvores
frutíferas e disputa a atenção de quem visita o local. Vende bebidas, salgados
e produtos feitos pelas doceiras da região. O fogão à lenha e os tachos de
cobre foram mantidos no Casarão. Cadeiras antigas e até uma réplica da mala que
foi usada na fuga da pintora podem ser observadas num dos espaços do museu. No
porão foram expostos bordados e a sacola que pertenceu a Maria Imaculada.
O Museu Laura Guimarães organiza mostras de cinema e saraus que
acontecem no auditório e no quintal, entre as árvores frutíferas, a nascente e
o café. Também organiza visitas guiadas pelos becos que inspiraram a pintora, e
até caminhadas pelas rotas percorridas por Maria Imaculada. Uma pequena loja
foi instalada perto do café, vende artesanatos vilabelenses. Nas escolas da
região são realizados concursos para escolher crianças que são treinadas para
guiar os turistas pelo museu, contando a história da pintora, da cidade e do
Casarão.
Intelectuais,
estudantes, professores, curiosos e diletantes, que iam à Vila Bela para
visitar a pintora; passaram a ir à cidade para visitar o Museu Laura Guimarães.
Um ensaísta escreveu sobre Maria Imaculada, a quem definiu como a mulher do
subsolo. Artesãos, doceiras e comerciantes se beneficiaram com a criação do
museu. Vila Bela tinha o casario dos tempos da mineração, é cercada por serras
e banhada por águas cristalinas. Faltava uma atração cultural para firmar a
cidade como destino turístico. O Museu Laura Guimarães resolveu o problema.
Vila Bela virou marca de café e de cervejas artesanais.
Maria Imaculada e Laura Guimarães não foram totalmente aceitas pelos
vilabelenses, nem depois de mortas, mas passaram a ser toleradas. A pintora e a
bordadeira viraram imãs de geladeira, chaveiros e até bonecas de pano que
turistas adquirem como recordação de Vila Bela. O local em que Maria dormia foi
sinalizado com uma boneca de pano. No quintal, perto do café, foi colocada uma
escultura que representa a pintora.
Laura Guimarães e Maria Imaculada trocavam poucas palavras, se
comunicavam por olhares. Mas naquela tarde foi diferente. Quando a bordadeira
atravessou o Casarão, a pintora pediu um favor. Queria acompanhá-la pela
cidade. Maria assentiu balançando a cabeça. Laura agradeceu.
No dia seguinte saíram cedo. Passaram na Rua do Comércio e no
Correio. No caminho para o Mercado Municipal, encontraram um grupo de crianças.
A pintora encarou uma por uma, e naquele dia elas não fizeram chacota com a
bordadeira. No meio da manhã, pararam na casa de uma cliente para entregar
bordados. Conversaram e beberam café. Ao sair, Maria perguntou se Laura queria
conhecer um lugar especial.
Percorreram a avenida que leva à estrada. Caminharam mais um
pouco. O sol estava forte. Entraram por uma trilha discreta e estreita. A
sombra das árvores refrescou as mulheres. Poucos metros à frente encontraram
quedas d’água e piscinas naturais. Laura Guimarães não suspeitava que, um pouco
acima de Vila Bela, o Rio Claro formava paisagens tão deslumbrantes. Perguntou
se Maria Imaculada conhecia o local há muito tempo. A bordadeira assentiu
balançando a cabeça. Banharam-se. Contemplaram o cair da tarde e o pôr do sol.
Retornaram no começo da noite. Tinham os cabelos molhados.
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