O BRASIL E A PARALISIA DO SONO
O
teatro dos vampiros é uma canção da Legião Urbana lançada em
1991, quando o neoliberalismo dava os primeiros passos no Brasil: “Vamos sair,
mas não temos mais dinheiro. Os meus amigos todos estão procurando emprego
[...] a cada hora que passa envelhecemos dez semanas”. Passadas três décadas, a
sensação é parecida. O Brasil é um enorme teatro de vampiros.
Matéria publicada na Folha de São Paulo informou
que, entre os entrevistados, 26% cortaram ou reduziram despesas com planos de
saúde, enquanto 14% deixaram de pagar escolas privadas e transferiram os filhos
para a rede pública [1]. Ao mesmo
tempo, tramita a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, também
conhecida como reforma administrativa, ou PEC
da Rachadinha, porque amplia a possibilidade de indicação, sem concurso
público, para cargos de “liderança e assessoramento”. Como se não bastasse o
patrimonialismo escancarado, todo movimento da PEC é privatizante, reposiciona
o Estado como subsidiário do mercado. Ou seja, não é uma simples reforma
administrativa, é uma reorganização do capitalismo brasileiro para garantir os
lucros da burguesia. Originalmente, o texto propunha que a subsidiariedade
fosse incluída entre os princípios da administração direta e indireta dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Na prática
significa que só deve haver serviços públicos em áreas não alcançadas por
empresas privadas. O princípio da subsidiaridade foi retirado, mas a essência
da PEC se mantém: fragiliza e enfraquece os serviços públicos para garantir os
lucros da burguesia. Numa conjuntura de
forte crise do capital, com a população sem condições de pagar por saúde e
educação, a burguesia amplia o problema destruindo e enfraquecendo os serviços
públicos.
Com a PEC da Rachadinha, a precarização chega ao último reduto do
trabalho estável no Brasil, o funcionalismo. Se a reforma administrativa for
aprovada, virão contratações por prazo determinado, inclusive devido à paralisação
de atividades (greves), restrições para concessão de estabilidade, fragmentação
de carreiras, avaliações duvidosas. Tudo somado, crescerá ainda mais o assédio
moral, além de fragilizar os sindicatos e os serviços públicos, comprometendo,
sobretudo, a população que não pode pagar por saúde, educação e outros serviços.
Em 18 de agosto, houve um dia nacional
de luta dos trabalhadores do setor público contra a PEC da Rachadinha e pelo fora Bolsonaro. A mobilização foi
importante, mas insuficiente para atingir os objetivos a que se propôs. Parece
que, quanto mais cristalino fica que o bolsonarismo só pode ser derrotado nas
ruas, mais a esquerda institucionalizada adia e limita os enfrentamentos para a
eleição de 2022. A esquerda mais à esquerda esbraveja, lança panfletos, denuncia,
escreve notas de repúdio, organiza lives,
mas não consegue influir decisivamente nos acontecimentos.
No Brasil estão sendo destruídos os biomas,
os direitos trabalhistas, a seguridade social, a saúde, a educação, as universidades,
as instituições de pesquisa. A população pobre e periférica é vítima constante
das polícias militares. Estão ameaçadas as demarcações das terras dos povos
originários. A conta de luz sobe sem parar e há risco de ocorrerem apagões nos
próximos meses. A inflação devora a renda da classe trabalhadora. A pandemia
ceifou, até agora, mais de meio milhão de vidas, sendo que muitas mortes
poderiam ser evitadas. O aumento da miséria é visível nas calçadas, com dezenas
de pedintes nas portas dos bancos, drogarias, supermercados e restaurantes. A
precarização é visível nas ruas e avenidas, com centenas de trabalhadores
correndo, arriscando a vida e ganhando pouco para entregar comida e outras
mercadorias.
A partir dos anos 1990, inclusive durante
os governos do PT, a burguesia brasileira atuou para transformar o
neoliberalismo em lei, fechando as possibilidades para keynesianismos e
desenvolvimentismos. Penso, por exemplo, na lei de responsabilidade fiscal. Como
ser keynesiano e/ou desenvolvimentista sem poder intervir na economia ampliando
os investimentos públicos? Por trás de todas as contrarreformas estava – e está
– a inconfessável necessidade de garantir recursos para o pagamento da dívida
pública, que consome aproximadamente metade do orçamento do Estado brasileiro,
asfixiando a economia para enriquecer um punhado de parasitas. Nos últimos
anos, com a crise do capital, a burguesia intensificou os ataques: uma nova e
mais brutal reforma da previdência, a autonomia do Banco Central, a Emenda
Constitucional do Teto de Gastos, mais privatizações, as reformas trabalhista e
administrativa. Enquanto o presidente arrota sandices e golpes de Estado, os
burocratas abaixo dele conspiram para eliminar direitos dos trabalhadores e
desconstruir o pouco que ainda resta dos serviços públicos. Em agosto passado,
no mesmo dia em que tanques de guerra passearam por Brasília espalhando fumaça,
a Câmara aprovou mais um grande ataque aos trabalhadores, dessa vez definido
eufemisticamente como minirreforma trabalhista. Mas, como era previsível,
nenhuma das contrarreformas, nem todas somadas, produziram – ou produzirão – o
crescimento econômico que prometiam, antes pelo contrário, na última década o país
empobreceu em termos absolutos e relativos [2].
A paralisia do sono é um fenômeno
assustador. A consciência desperta, mas o corpo é incapaz de se movimentar
porque os músculos não respondem. Trata-se de uma desconexão temporária das
funções motoras. O indivíduo vê vultos e monstros, mas não consegue se mexer,
como se estivesse acordado dentro de um pesadelo. A paralisia do sono é uma boa
metáfora para o Brasil. Excetuando-se os bolsonaristas, a extrema direita e os
setores da burguesia favorecidos diretamente pelas contrarreformas, a
decomposição social e econômica não interessa a ninguém, mas avança com passos
largos. Não se trata de falta de consciência, é razoavelmente sabido que as
contrarreformas e os ajustes fiscais – intensificados a partir de 2015 e
aprofundados ainda mais com Temer e Bolsonaro – são péssimos para a classe
trabalhadora. Mas não há resposta à altura. Não é falta de consciência, é
incapacidade de mover os músculos coletivamente. O mal-estar generalizado do tempo
presente tem a ver com isso, é causado pela sensação de impotência e de
incapacidade coletiva para combater os ataques dos governos de plantão. Sabe-se
que as contrarreformas e os ajustes fiscais serão revertidos com ação direta,
ou não serão, mas a classe trabalhadora não se movimenta, não está morta ou
derrotada, está paralisada, as lutas estão isoladas e limitadas, apesar do
desemprego, da inflação, da carestia, da violência policial, da destruição do
meio ambiente, da expropriação das terras dos povos originários, das vidas
desperdiçadas pelo negacionismo. A questão é: até quando? Porque exploração e
espoliação têm limites. Nos indivíduos, a paralisia do sono é passageira, dura
segundos ou, no máximo, minutos. Será passageira, também, a paralisia do sono na
classe trabalhadora brasileira?
Notas
[2]
Enquanto
Brasil cresce apenas 2,2% na década, mundo avança 30,5%
Publicado originalmente no Passa Palavra
Nenhum comentário:
Postar um comentário