SANTO
Um homem, afinal de contas, não devia
conhecer tudo, sobressair-se em múltiplas atividades, iniciar a mulher nas
energias da paixão, nos refinamentos da vida, em todos os mistérios? Mas aquele
ali não lhe ensinava nada, não sabia nada, não desejava nada. Achava que era
feliz; e ela o detestava por aquela calma tão assentada, por aquele peso
sereno, pela própria alegria que ela lhe dava.
(Gustave Flaubert -
Madame Bovary)
Estava no túnel de
entrada para o segundo tempo da vida. Havia se acostumado com o substantivo
masculino senhor. Em algum momento, talvez no terceiro quarto do primeiro tempo
da vida passou, precocemente, a ser chamado de senhor. Não se incomodava. Era
casado, tinha duas filhas e usava roupas discretas: sapatos e cintos da mesma
cor, camisas por dentro da calça, blusas de lã com gola v. Mas, como registrou
um escritor um pouco anterior ao nosso tempo: um dia surge o “por quê e tudo começa a entrar numa lassidão
tingida de assombro.”
Era bancário.
Fazia pagamentos e transferências. Os valores que movimentava na agência
faltavam-lhe no bolso. Geralmente ficava sem dinheiro no meio do mês. Usava o
cheque especial com a moderação permitida pela correlação de forças familiares.
Na economia doméstica, ele era neoliberal, enquanto a mulher e as filhas eram
neodesenvolvimentistas. Ele defendia o corte de gastos e o equilíbrio das
contas. Elas exigiam a ampliação dos investimentos e das despesas sociais.
Aquele lar era um bom exemplo de que as economias familiares não podem ser comparadas
com as economias nacionais.
De manhã cedinho o
cão o levava para passear. Às seis em ponto o animal corria e latia no quintal.
Davam voltas no quarteirão até o cachorro se aliviar. Recolhia as fezes do
animal e as depositava no cesto de lixo, devidamente embrulhadas. Daí seguiam
para a padaria. Amarrava o cachorro e comprava pães para o café da manhã.
Depois deixava as filhas no colégio e seguia para o banco. Às vezes fazia horas
extras. Nesses dias ajudava a preparar o jantar, lavava a louça e dormia.
Quando chegava no horário normal, aproveitava para assistir TV com a família.
Não gostava de novelas, mas elas o faziam relaxar e esquecer o dia a dia, além
de proporcionarem algum contato com a mulher e as filhas, que exigiam silêncio
quando ele puxava assunto. Às vezes se repreendia por falar sempre na hora
errada. Às vezes se retirava e ia para o quintal brincar com o cachorro, se
acalmava e voltava. Era o melhor amigo do cão. Às vezes tentava colocar o animal
dentro de casa, mas era repreendido pela esposa. Se pudesse, pelo menos,
acompanhar a novela junto com o cão... Às vezes tinha vontade de assistir
telejornais e programas esportivos, mas declinava para não contrariar a esposa
e as filhas. Nem cogitava a possibilidade de assistir telejornais e programas
esportivos no quarto, longe da mulher e das meninas.
Duas vezes por
semana buscava as filhas no balé. Não se incomodava com o trânsito parado. Mas,
nas apresentações semestrais, no ginásio do clube, esforçava-se para não
cochilar, e aplaudia coreografias que não entendia. Pensava ser a desvantagem
de ter filhas. Assistir um filho jogando futebol talvez fosse mais interessante
– cogitava sem muita convicção. Queria tentar mais uma gravidez, quem sabe
viesse um menino, mas a esposa não aceitava.
Aos sábados fazia
pequenas manutenções na casa. Sempre sob supervisão crítica da esposa, que
reclamava das limitações dele como reparador de interiores e exteriores. Ela
dizia que qualquer homem da família dela faria o mesmo trabalho melhor e mais
rápido. Ele trocava o telhado, pintava a fachada, limpava a caixa d’água,
consertava o portão automático. À noite saía com a família. Deixava a mulher e
as filhas escolherem o restaurante, em geral elas escolhiam algum shopping da
cidade, para jantar e ir ao cinema. Ele não se incomodava com as filas e a
lotação, nem se irritava com a dificuldade para estacionar. Elas desciam e
faziam compras enquanto ele esperava aparecer alguma vaga no estacionamento,
assim a mulher e as filhas aproveitavam melhor os passeios. Além de fazer
compras, elas gostavam de filmes de ação. Ele não tinha preferências. Quando
enjoava dos filmes que elas escolhiam, se escondia atrás dos óculos 3D e
dormia. As filhas diziam que o pai vivia cansado, que só dormia. Ele concordava
e ria: era verdade!
Aos domingos
jogava futebol. Mais importante era papear com amigos depois da pelada. Mas
tinha pouco tempo. Almoçava na casa da sogra. Era sempre o primeiro a deixar o
clube. Saía antes de terminarem as primeiras cervejas. Porque começava a sentir
dores nos joelhos e tinha que almoçar na sogra, pensou em largar o futebol.
Apesar de não atrasar mais que quinze minutos, quando chegava na casa da sogra
era lembrado de que o almoço já estava pronto, sendo interpelado por olhares
inquisidores. Elas perguntavam por que ele continuava correndo atrás de bola,
se já não tinha mais idade.
Nos almoços
dominicais, depois do macarrão vinha um assado, frango ou carne de boi, mais
raramente costelinhas de porco; depois do macarrão e do assado vinha a
sobremesa, geralmente pudim de leite condensado, porque as meninas gostavam;
depois da sobremesa vinha o café; depois do café vinha o dominó, que jogavam
até anoitecer, deixava a sogra e as filhas ganharem. Alegrava-se com a alegria
delas.
Nos aniversários
era sempre ele que puxava a parte do “e pra fulana nada”, ao que as demais
respondiam “tudo”, ele perguntava “então como é que é?”, e elas retrucavam com “é
pique, é pique, é pique, é pique, é pique.” É graças a homens como ele que, em
nenhuma mesa e em nenhum salão, nunca o “parabéns pra você” parou no meio por
falta de alguém que emende o “e pra fulano nada?”. Estranho acordo ontológico, mesmo sem nenhum
contato prévio e sem nenhum treinamento, sempre haverá alguém para dizer “e pra
fulano nada”. O que faz um homem saber que chegou a sua vez de ser protagonista
no “parabéns pra você”? Seja como for, o fato é que tais homens são as vigas de
sustentação das famílias.
Quando as filhas
brigavam porque uma queria ir ao shopping e a outra à pizzaria, ou porque uma
não queria que a outra usasse suas roupas, ou porque uma acusava a outra de
bagunçar o quarto, ou porque uma dizia que a outra tinha comido todo pudim de
leite condensado: ele intervinha. Explicava calmamente que elas eram irmãs e precisavam
se entender, que uma tinha razão, mas a outra também, que o papai amava as duas
igualmente. Não raro acontecia das irmãs, com apoio da mãe, se juntarem contra
ele. As brigas nunca começavam com ele, mas costumavam se virar contra ele:
como se o pai fosse culpado pelos desentendimentos e por todos os problemas da
família e do mundo. Era como culpar um pernilongo por uma hemorragia. Ele
desconhecia a comparação, mas certamente estaria disposto a aceitar que um
pernilongo pode causar uma hemorragia, especialmente se fosse para acalmar os
ânimos familiares. Ele era um pernilongo que nem picava nem fazia barulho, mas,
às vezes, mulher e filhas tinham vontade de esmagá-lo com as mãos.
Vendeu um dos
carros para bancar a lipoaspiração e o silicone da esposa. Ficou sem o veículo
que usava para se locomover, mas a alegria da mulher compensou com vantagem o
esforço para enfrentar o transporte público, mesmo nas épocas de chuva. O que
era um sapato molhado durante todo o dia perto da alegria da esposa? O que eram
duas horas chacoalhando nos coletivos perto da felicidade dela? Podia ouvir
música pelo fone. Usava o tempo disponível para pensar na família e planejar o
futuro.
Com a cintura
fina, as pernas torneadas, os peitos duros e duas horas diárias de academia, a
esposa passou a implicar com a barriga dele. Havia tantos homens que estavam
melhor que ele, uns 60 só no clube – pelas contas dela. Um homem que não se
cuida não merece uma mulher bem cuidada – dizia a esposa. Ele concordava e
prometia se matricular na academia, ou, pelo menos, comprar uma bicicleta
ergométrica e um banco de supino. Faltava-lhe tempo e energia. Mas sabia que
ela tinha razão. Desconfiava, inclusive, que no clube havia mais de 60 homens
que estavam melhor que ele, o número era arbitrário, bondade e complacência da
esposa. Sentia ciúmes dos homens que estavam melhor que ele, especialmente
aqueles 60 ou mais. Sonhar com o barulho de pernilongo pode significar que há
pernilongos no quarto. Mas ele tinha certeza de que a mulher nem reparava nem
se interessava por outros homens, se falava deles era para incentivá-lo a se
cuidar. Estava realmente barrigudo e fora de forma. Ela tinha razão. Estava
corretíssima.
É verdade que
reparava em outras mulheres. Nutria algum interesse por dormir com outra
mulher. Era o invariável desejo de variar. Inclusive porque a esposa foi a
primeira e a única namorada dele. Mas o receio de magoar a mulher e as filhas o
continha. O risco não compensava o investimento – pensava aquele trabalhador da
área financeira. Sou casado, minha vida é boa, não posso arriscar – dizia para
si próprio. Foi legítimo herdeiro da tradição inaugurada por Charles Bovary,
apesar de não conhecer literatura nem ter tempo para livros. Enfim. O bovarismo
– entendido como alteração do senso de realidade – foi pensado a partir de Emma
Bovary, mas é preciso estudar o fenômeno também a partir de Charles Bovary.
Certa vez precisou renovar documentos e certidões. Pediu liberação do trabalho no período da manhã e agendou a visita ao posto de atendimento. Passeou com cão. Comprou os pães. Foi a pé renovar os documentos e as certidões. Era a primeira quebra de rotina em muitos anos. Constatou que as ruas em que crescera estavam lotadas de edifícios e automóveis. No posto de atendimento foi solicitado a confirmar as informações pessoais anotadas pela atendente. Data de nascimento: correto. Pai: correto. Mãe: correto. Estado civil: correto. Cor dos olhos: correto. Cabelos... Grisalhos? Foi quando surgiu-lhe o por quê. Sentiu, espantado, a passagem do tempo, como se tivesse ficado grisalho naquela manhã. Por que o tempo passa tão rápido? Convivia com o substantivo senhor, mas era a primeira vez que se deparava com o adjetivo grisalho. Tinha algumas dezenas de cabelos brancos, era fato, mas nunca havia sido chamado de grisalho.
Publicado originalmente no Passa Palavra
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