A GRANDE ADÚLTERA
Emma
Bovary provoca paixões violentas, a favor e contra. A favor: o escritor Mario
Vargas Llosa [1] e mais alguns. Contra: o Ministério Público Francês e o
promotor Ernest Pinard, que levaram Gustave Flaubert para o banco dos réus por ofensa
à moral e aos bons costumes. Componho o primeiro grupo. Foi paixão à primeira
leitura. Talvez por saber, desde o início, que o destino dela seria trágico, e
por constatar, a cada página, que ela não recuaria. Vale pontuar que Emma
Bovary era grande leitora de romances, também ela sabia o destino reservado às
adúlteras. Enfim. Sempre que posso, retorno ao romance de Flaubert. Costumo ler,
também, o que encontro sobre a Madame.
Num
sebo, procurando livros na seção de crítica literária, encontrei Os ovários
de Mme. Bovary, de David Barash e Nanelle Barash [2]. Comprei, li e
recomendo. São dez ensaios que analisam obras literárias com instrumental
darwiniano. Os autores passam por Jane Austen, Shakespeare, Faulkner,
Dostoievski, Joyce, Philip Roth, Flaubert e outros. Os ovários de Mme Bovary...
Uma sacada provocativa, explicita a ideia que perpassa todos os ensaios: a
biologia tem muito a dizer sobre o comportamento humano, seria “uma chave [...]
que abre mais portas, dá acesso a mais lugares e lança mais luz do que qualquer
de suas alternativas menos versáteis”. Os autores não se arriscam a ponto de afirmar
que a biologia explica totalmente a literatura, sabem que os seres humanos são
animais culturais, com imaginação e intelecto. Mas lembram, por outro lado, que
não é por ter imaginação e intelecto que os homens deixam de ser animais. Se é
assim, seria possível “encontrar raízes na biologia, o leito comum que todos os
seres humanos compartilham com focas, alces, gorilas e grande parte do mundo
animal”.
Por
meio da Madame Bovary, de Flaubert, David Barash e Nanelle Barash discutem “a biologia
do adultério”. Afirmam, por exemplo, que pesquisadores analisaram diversas
espécies e perceberam que, em alguns casos, 70% das crias nascem de traições,
ou seja, de relações extraconjugais. Emma Bovary, por exemplo, teria ouvido um
sussurro darwiniano subliminar que lhe provocou comichão nos ovários,
empurrando-a para a cama com Rodolphe e Léon. Os autores vão mais longe. Argumentam
que a tendência à infidelidade da Madame Bovary aumentou quando o marido sofreu
um revés profissional. No que ela se aproximaria das fêmeas de chapim-real, que
geralmente são fiéis, mas às vezes traem os parceiros, especialmente quando eles
fracassam socialmente. De acordo com os autores, a ausência de inclinação para
a maternidade também pode ter aumentado a tendência à infidelidade de Emma
Bovary, que pouco se preocupava com a filha.
É
interessante reler a personagem de Flaubert a partir dos ovários. Mas, para
mim, que sou do time dos apaixonados por ela, a interpretação biologizante
pareceu insuficiente e até desrespeitosa com a adúltera, como se a rebaixasse.
Onde David Barash e Nanelle Barash enxergam a “biologia do adultério”, vejo “a
poesia do adultério”. Curiosamente, o promotor que acusou Flaubert concorda
comigo. A expressão “poesia do adultério” é dele, que, além disso, definiu o
romance como “uma pintura admirável sob o ponto de vista do talento, mas uma
pintura execrável do ponto de vista moral.” [3] Detalhe. Vargas Llosa
lembra que o promotor que acusou Flaubert por ofensa à moral e aos bons
costumes escrevia, secretamente, versos pornográficos...
Emma
Bovary era uma leitora incansável: “mesmo à mesa levava um livro e virava as
páginas enquanto Charles comia e falava-lhe” [4]. Flaubert
informa que, após a primeira traição, ela lembrou-se das heroínas dos livros
que lera, aquela legião lírica de mulheres adúlteras tomou-lhe a memória de
assalto, como irmãs que a seduziam. Realizou, então, o longo devaneio de
juventude e se tornou uma mulher apaixonada. Além disso e ao mesmo tempo, sentiu-se
vingada. Sofrera muito. Mas, finalmente, triunfava. O amor, por tanto tempo
reprimido, “jorrava alegremente em alegre efervescência.” [5] Se é assim,
por mais provocativa que seja a ideia, não dá para limitar Emma Bovary aos
ovários.
Mais
interessante do que explicar as paixões de Emma Bovary é pensar por que ela
continua apaixonante um século e meio depois da publicação do romance. Como
explicar o amor pela personagem de Flaubert? O que dizer da paixão dos
leitores, como eu, por uma adúltera sem ovários, posto que é uma personagem? Será
que, inconscientemente, gostaríamos de fazer amor com ela? Transmitir nosso
material genético para a posteridade junto com ela? Se fosse isso, ponto para o romancista, que teria
irritado o Ministério Público, iludido a seleção natural e despertado a atração
sexual dos leitores por uma personagem. Mas não é por aí. O instrumental da
biologia é insuficiente para explicar por que amamos Emma Bovary. Ela apaixona
devido à escrita de Flaubert [6], que recorta e reorganiza a realidade, reposicionando
e revalorizando objetos (leques, buques, frascos de perfume) e partes do corpo
humano (mãos, unhas, pulsos). O romancista humaniza as coisas e coisifica as pessoas,
exceto a personagem principal, que se destaca. Mas não é só isso. Emma Bovary
apaixona, sobretudo, por suas apologias e rechaços: sim para os livros, sim
para os sonhos, sim para a imaginação, sim para o amor; não à filha, não ao
marido, não ao casamento, não à monogamia e, seguindo por esse caminho, não ao
patriarcado. Ela afirma e recusa ao mesmo tempo e com a mesma radicalidade.
Morreu com um “riso atroz, frenético, desesperado.” [7] Acrescento:
desespero libertador dos que não esperam absolutamente nada.
Emma foi uma
leitora que teve contato, pelos romances, com uma legião lírica de adúlteras.
Ela certamente conhecia o destino reservado às senhoras que amam fora do
casamento. Que seja difícil, quase impossível, amar dentro do casamento, não alivia
a condenação dela e das demais. O destino de Emma Bovary é parecido com o de
Ana Karenina e tantas que as precederam. Mas ela não se intimidou. Vargas Llosa
[8]: “Emma quer gozar, não se conforma em reprimir em si essa profunda
exigência sensual que Charles não consegue satisfazer porque nem sabe que
existe.” Se é assim, a personagem de Flaubert pode ser considerada uma espécie
de feminista avant la lettre. Além disso, ela foi liquidada por um
agiota e pelo patriarcado, mas não costuma contar com a simpatia nem dos
setores progressistas. Provavelmente porque sua recusa é demasiadamente
radical: rebelou-se contra a maternidade (“como essa criança é feia” – murmurou
ao lado da filha, que dormia), arruinou as finanças familiares, amou fora do
casamento (“sem remorsos, sem inquietude, sem desassossego”) [9].
Mas a leitora incansável
devia morrer porque ousou ser ousada. Seus amantes seguiram suas vidas
normalmente. A poligamia lhes era permitida. Eles dormem enquanto o corpo dela
é velado: “Rodolphe, que para distrair-se andara o dia todo, dormia
tranquilamente em seu castelo; e León, lá em Rouen dormia também.” [10]
Ela se despede da vida. Eles não se despedem dela.
A
palavra adultério vem do latim adulterĭum, no sentido de traição, mas também
como mudança e alteração. Na terceira parte do romance A insustentável
leveza do ser, intitulada As palavras incompreendidas, Milan Kundera
[11] discute a traição a partir da pintora Sabina, que é legitima
integrante da legião lírica de mulheres adúlteras, uma espécie Madame Bovary da
Boêmia: “A traição. Desde nossa infância, papai e o professor nos repetem que é
a coisa mais abominável que se possa conceber. Mas o que é trair? Trair é sair
da ordem. Trair é sair da ordem e partir para o desconhecido. Sabina não
conhece nada mais belo do que partir para o desconhecido.” Contra Emma Bovary joga
a moral cristã a ensinar que a carne não vale, que sexo é pecado, que a mulher
deve ser submissa, que é preciso se arrepender. Ela trava um combate desigual
contra a culpa, a submissão, o arrependimento e a repressão sexual. Que Emma
tenha traído o marido porque sentiu comichão nos ovários é apenas uma parte da
história. É preciso lembrar que ela foi uma leitora que disse não, que não
cabia numa sociedade provinciana ao lado de um homem medíocre. Por tudo isso,
vejo Emma Bovary para além dos ovários: é a grande adúltera no melhor sentido
da palavra – como mudança e alteração, como quem sai da ordem e parte para o
desconhecido. Evoé, Madame Bovary!
Notas
[1]
Mario
Vargas Llosa. A orgia perpétua – Flaubert e Madame Bovary. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2015.
[2]
David
P. Barash e Nanelle R. Barash. Os ovários de Mme. Bovary – um olhar darwiniano
sobre literatura. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.
[3]
As palavras do promotor que acusou Flaubert foram citadas por Vargas Llosa, na
edição referenciada na nota 1.
[4]
Gustave
Flaubert. Madame Bovary. Porto Alegre: L&PM, 2016.
[5]
O
trecho entre aspas está no romance de Flaubert, na edição referenciada na nota anterior.
[6]
Emma
Bovary: a condenação perpétua
[7]
O
trecho está no romance de Flaubert, na edição referenciada na nota 4.
[8]
O
trecho está no livro referenciado na nota 1.
[9]
Os
trechos entre aspas estão no romance de Flaubert, na edição referenciada na
nota 4.
[10]
O
trecho entre aspas está no romance de Flaubert, na edição referenciada na nota 4.
[11] Milan Kundera. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das letras, 2008.
Publicado originalmente no Passa Palavra
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