A LONGA VIAGEM DE BELCHIOR
Belchior
(1946-2017) foi um compositor de Música Popular Brasileira (MPB). Nasceu em
Sobral, no Ceará. O avô tocava sax e flauta. A mãe cantava na igreja. Tinha
tios seresteiros. Ainda menino se apresentava como cantador repentista. Frequentou
o Seminário dos Capuchinhos. Foi programador de rádio. Mudou-se para Fortaleza.
Participou de festivais de música, se aproximou de outros artistas. Chegou a
cursar quatro anos de medicina, mas abandou a universidade. Foi para o Rio de
Janeiro e, depois, São Paulo. Viajou de carona num avião do Correio Aéreo
Nacional, espécie de prenúncio do que viria depois na obra e na própria vida do
artista. Ganhou o IV Festival Universitário da MPB com a canção Na hora do
almoço. Criou um estilo próprio em que cabia sua voz peculiar. Teve canções
gravadas por Elis Regina e deslanchou. Wilson Simonal, Lenny Andrade, Roberto
Carlos, Vanusa, Fagner, Jair Rodrigues, Gilberto Gil, Ivan Lins, Zé Ramalho,
João Bosco, Margareth Menezes, Ney Matogrosso e outros também gravaram canções
de Belchior. Fez sucesso principalmente nos anos 1970, com os álbuns Alucinação
(1976), Coração selvagem (1977), Todos os sentidos (1978), Era
uma vez o homem e seu tempo (1979). Além de músico, foi poeta, pintor,
desenhista e leitor de mão cheia. Estudou caligrafia. Dominava vários idiomas. Foi
da poesia para a música. Fazia citações eruditas nas canções. Dizia ser um
compositor brasileiro nascido no Nordeste que prezava mais suas raízes humanas
– que eram amplas, estavam em todos os lugares e em movimento – que suas raízes
regionais e folclóricas.
Mais
ou menos quando completou 60 anos, Belchior iniciou um movimento inusitado. Foi
aos poucos cortando os laços que o prendiam à família, aos amigos, ao passado e
à própria música. Separou-se e foi morar num flat com uma artista plástica. Viajaram
e se hospedaram em hotéis saindo sem pagar. Moraram de favor em casas de fãs. Passaram
um natal numa rádio abandonada. Ficaram por um tempo num mosteiro. Chegaram a
morar com o Movimento dos Pequenos Agricultores e em uma comunidade alternativa.
Belchior parou de fazer shows. Também parou de pagar pensões e outras despesas.
Teve a conta bancária bloqueada e mandados de prisão decretados. Perdeu carros
e outros bens. Passou uma noite debaixo de uma ponte. Sofreu com o
sensacionalismo midiático. Foi caçado e forçado a dar entrevista para o
principal canal de televisão brasileiro. Perambulou entre o Uruguai e o Rio
Grande do Sul. Morreu vitimado por um rompimento na aorta. Tinha 70 anos. A longa
e última viagem de Belchior foi reconstituída e contada no livro Viver é
melhor que sonhar, de Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti [1].
O
sumiço de Belchior intrigou muita gente. Há vários palpites explicativos. Desde
que aspirava à santidade até que foi manipulado pela mulher que o acompanhou.
Os autores de Viver é melhor que sonhar entrevistaram mais de 150
pessoas que foram próximas ou que estiveram com Belchior nos últimos anos do
artista. Não conseguiram chegar a uma resposta sobre o sumiço. Mas deixaram uma
pista interessante que resolvi seguir. A longa viagem do artista poderia ser
uma possibilidade contida em algumas canções, como, por exemplo, Comentários
a respeito de John.
Estradas,
viagens e rupturas perpassam a música de Belchior. Um certo “meter o pé na
estrada like a Rolling Stone”, como na canção Velha roupa colorida. Talvez seja, inclusive, a principal linha de
força na poética do bardo. Com um detalhe sugerido pelos acontecimentos
posteriores: o que poderia parecer certo escapismo juvenil era, na verdade, um
projeto, quase uma ética, como se a vida estivesse sempre em outro lugar. Não se
tratava apenas da legítima necessidade de respirar num país bloqueado por uma
ditadura empresarial-militar, era uma profunda necessidade existencial. Exemplificando
com as canções do compositor. Mucuripe: “Vida, vento, vela, leva-me
daqui”. Paralelas: “Dentro do carro, sobre o trevo a 100 por hora/ Oh,
meu amor!/ Só tens agora os carinhos do motor”. Comentário a respeito de John: “Saia do
meu caminho/ Eu prefiro andar sozinho/ Deixem que eu decida a minha vida”. Tudo
outra vez: “Há muito, muito tempo que eu estou longe de casa” [...]
“Sentado à beira do caminho pra pedir carona/ Tenho falado à mulher
companheira/ Quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil” [...] “E um cara que
transava a noite no Danúbio Azul/ Me disse que faz sol na América do Sul/ E
nossas irmãs nos esperam no coração do Brasil” [...] “E eu vou viver as coisas
novas que também são boas/ O amor, humor das praças cheias de pessoas”. Coração
selvagem: “Meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente/
Tome um refrigerante, coma um cachorro-quente/ Sim, já é outra viagem/ E o meu
coração selvagem tem essa pressa de viver” [...] “Meu bem, talvez você possa
compreender a minha solidão/ O meu som e a minha fúria e essa pressa de viver/
E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza/ E arriscar tudo de novo com
paixão/ Andar caminho errado pela simples alegria de ser” [...] “Meu bem, vem
viver comigo, vem correr perigo, vem morrer comigo”.
Dá
para seguir a viagem pelos versos do bardo. Divina comédia humana:
“Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não/ Eu canto”.
Teria interrompido a carreira por não encontrar maneiras de dizer não? Belchior
chegou a afirmar que associava a liberdade à possibilidade de dizer não [2].
Velha roupa colorida: “Você não sente nem vê/ Mas eu não posso deixar de
dizer, meu amigo/ Que uma nova mudança em breve vai acontecer”. A rima
implícita faz a palavra amigo, no segundo verso, sugerir comigo na sequência.
Como se a mudança fosse acontecer com o poeta.
Brincando com a vida: “Vida, eu não aceito, não! A tua paz/
Porque meu coração é delinquente, juvenil/ Suicida, sensível demais” [...] “A
vertigem, o abismo, me atrai/ É esta a minha brincadeira”. O que foi a longa
viagem do bardo senão uma busca pelo abismo e uma brincadeira com a vida? Princesa
do meu lugar: “Se me der vontade de ir embora/ Vida adentro, mundo a fora/
Meu amor, não vai chorar”. Espécie de alerta prévio do que viria tempos depois.
O mesmo acontecendo na canção Passeio: “Nesse cimento, meu pensamento e
meu sentimento/ Só têm o momento de fugir no disco voador”.
Se
não for viagem minha, há uma coerência intrigante entre as canções de Belchior
e o sumiço dele. A obra joga luz sobre a longa viagem do artista e o inverso é
verdadeiro. Muito se falou contra a última mulher do compositor, que o teria
isolado da família, dos amigos e da própria carreira. Pode ser. É uma possibilidade.
Mas, pelas canções, percebe-se que o artista precisava de uma companheira para
cair na estrada com ele, para ganhar “esse mundo de meu Deus”, como na canção Galos,
noites e quintais. Ou, como em Coração selvagem, precisava de uma
mulher que lhe compreendesse a solidão, o som, a fúria e a pressa de viver. Uma
companheira capaz de deixar a certeza de lado e arriscar com paixão, andando
caminho errado pela simples alegria de ser.
Os
autores de Viver é melhor que sonhar estabelecem paralelos literários
para pensar o sumiço de Belchior. Citam a fuga de Tolstói, aos 82 anos [3].
Como Hans Castorp, que foi ficando no sanatório por vontade própria, Belchior
ia ficando nas casas de fãs e amigos que o abrigavam [4]. O desaparecimento
teria sido tão inexplicável quanto o aparecimento do corvo no quarto, sempre a
repetir “nunca mais” [5]. Eu, pelo meu lado, vi na longa viagem de
Belchior um “preferiria não” à la Bartleby [6]. Repetidas vezes pessoas
próximas tentaram convencer o bardo a tocar, arrecadar dinheiro e melhorar sua
situação. Todas as vezes ele deu um jeito de recusar, como Bartleby, o funcionário
que respondia “preferiria não” quando o chefe lhe dava ordens. Um fã e amigo que
esteve com Belchior nos últimos anos do compositor afirmou: “Ele não queria
mais voltar e não voltaria sob hipótese nenhuma. Ainda assim, alimentava-se
desses sonhos.” [7]
Mais
um paralelo literário por minha conta e risco. Ricardo Piglia escreveu um
livro saboroso intitulado O último leitor [8]. Vai de Kafka a
Joyce passando por Emma Bovary, Ana Karenina e Ernesto Che Guevara. O último
leitor, para Piglia, é justamente o revolucionário argentino: “Guevara é o
último leitor porque já estamos diante do homem prático em estado puro, diante
do homem de ação.” A conclusão do ensaio sobre Che Guevara é uma daquelas
sacadas que só os grandes romancistas são capazes de formular [9]. Mas voltando.
Enxerguei um paralelo entre Che e Belchior pela afirmação da identidade
latino-americana e porque ambos foram grandes leitores que ficaram quase sem
nada, mas nunca sem livros. Che carregava livros quando foi capturado na
Bolívia. Belchior jamais se distanciou dos livros, passou os últimos anos lendo,
trabalhou numa tradução popular para a Divina Comédia. Outra aproximação
possível é pelas viagens. Diz Piglia sobre o jovem Ernesto Guevara, que ainda
não era o Che: “Escrever e viajar, encontrar uma nova maneira de fazer
literatura, um novo jeito de narrar a experiência.” O mesmo estava posto para
Belchior. Como possibilidade nas canções. Como fato consumado e conquistado nos
últimos anos de vida. Com a peculiaridade de que o compositor alterou a ordem
natural das coisas. Muitos jovens latino-americanos, como Ernesto Guevara,
caíram na estrada nos anos 1950, 1960 e 1970. Belchior fez o mesmo décadas
depois, nos últimos anos de sua vida, já no século XXI.
Se
estradas, viagens e rupturas estão nos versos de Belchior; se são uma das
principais linhas de força das canções: o sumiço dos últimos anos foi um
posfácio radical e coerente para uma obra que sobreviverá. Belchior não ficou
em casa contando vil metal. Certamente a longa viagem confundiu fãs, preocupou
amigos e magoou familiares. Mas era uma possibilidade contida na obra do
compositor. O artista devia estar farto de cantar as mesmas canções para o
mesmo público. Preferiu viver os versos na estrada, com outras pessoas, em uma
longa viagem: para realizar possibilidades contidas na música, porque viver é
melhor que cantar.
Notas
[1]
Chris
Fuscaldo e Marcelo Bortoloti. Viver é melhor que sonhar – os últimos anos de
Belchior. Rio de Janeiro: Sonora Editora, 2021.
[2]
A
entrevista em que o artista associa a liberdade à possibilidade de dizer não
está no documentário Belchior – Apenas um coração selvagem, de Camilo Cavalcanti e Natália Dias.
[3]
Tolstói
abandonou a família no final de 1910. Fugiu de trem. Morreu de pneumonia poucos
dias depois da partida.
[4]
Referência
ao romance A montanha mágica, de Thomas Mann.
[5]
Referência
ao poema O corvo, de Edgar Allan Poe.
[6]
Referência
ao conto Bartleby, o escrevente, de Herman Melville.
[7]
O
depoimento está no livro citado na primeira nota.
[8]
Ricardo
Piglia. O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[9] Trecho final do ensaio Ernesto Guevara, rastros de leitura, de Ricardo Piglia.
Publicado originalmente no Passa Palavra
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