TRÊS PASSEIOS NO INFERNO
[...]
Caminhava de pijama entre as estações de trabalho. Os aparelhos de
ar-condicionado funcionavam com capacidade máxima, resfriando o ambiente. Tocava
música estadunidense. Easy listening. Era uma sala grande, sem divisórias, com luz
artificial. Não enxergava nada além das estações de trabalho. Os homens vestiam
terno e gravata. As mulheres usavam roupas sociais e cachecóis. Todos se alternavam
entre os telefones e as telas dos computadores. Falavam alto. Procurou alguma
estação de trabalho vazia. Não encontrou. Tinha tarefas urgentes por fazer. Não
lembrava quais. Perderia o emprego. Ficaria sem salário. Não teria como pagar
as contas. Seria processado. Seria despejado. Seria preso. Chamou as pessoas.
Mas ninguém ouviu. Tocou no ombro de um homem. Teve a mão empurrada e afastada
com força e agressividade. Quis se refugiar debaixo de uma estação de trabalho.
Foi chutado pela funcionária que trabalhava sem parar. Tinha frio. Tinha família.
Tinha medo. Estava perdido. Seria demitido. Ouviu passos firmes e ritmados de
sapatos italianos. Era o chefe. Seria xingado. Seria humilhado. Então, puxou um
homem da cadeira. Tentou arrancá-lo à força. Precisava trabalhar. Trocaram
socos. Levou cabeçadas e cotoveladas. Desmaiou [...] Caminhava de cueca entre os
consumidores. O chão era limpo, frio, brilhante. Inclinou-se para frente. Viu o
próprio rosto refletido no piso. Estava descabelado e com olheiras, como se não
dormisse há meses. Passou por famílias bem vestidas. Era um corredor sem
janelas, com vitrines e luz artificial. Não enxergava nada além das lojas. Namorados passavam de mãos dadas, alguns
tinham 100 anos. Crianças passavam correndo. Mulheres passeavam com cães
topetudos. Todos exibiam sorrisos branquíssimos. Havia câmeras a cada 2 metros.
Havia alto-falantes anunciando promoções. Quis se refugiar na loja de tapetes. Mas
estava de cueca. Foi enxotado. Não via o final do corredor. Não havia saídas
laterais. Seguiu no sentido contrário das pessoas. Elas vinham. Ele ia. Elas
avançavam. Ele voltava. Seria denunciado. Ouviu um chamado para os seguranças
pelos alto-falantes. Teria pernas e braços algemados. Seria arrastado. Seria
humilhado. Estava frágil. Estava exposto. Tremia. O coração batia 180 vezes por
minuto. Com as mãos abria caminho entre as famílias, os namorados, as crianças
e as mulheres que passeavam com cães topetudos. Corria. Fugia. Mas o corredor
se estreitava cada vez mais. Gritou [...] Caminhava nu entre as camas
simetricamente posicionadas. O ambiente era limpo, frio, brilhante. Os
aparelhos de ar-condicionado funcionavam discretamente. Médicos e enfermeiros vestiam
jalecos brancos. Faxineiros trabalhavam com roupas brancas. Lençóis brancos
cobriam as camas brancas. Pacientes usavam camisolas brancas. Brancura do
vazio. Havia aparelhos médicos, frascos com líquidos e televisores sobre todas as
camas. Era uma sala imensa, com luz artificial. Não enxergava nada além das
camas brancas. Gemidos e gritos se misturavam com os apitos dos monitores
multiparamétricos e os sons dos televisores. Todos sintonizados num único
canal. Transmitiam o mesmo culto religioso. Procurou uma cama vazia. Chamou as
pessoas. Elevou a voz. Ninguém ouviu. Tocou no ombro de um médico. Foi ignorado.
Tentou puxar um lençol para se cobrir. Não conseguiu. Tinha tosse. Tinha dores.
Estava cansado. Estava morrendo. Estava nu. Queria deitar. Reuniu as últimas
forças e correu até uma cama que tinha o televisor e os aparelhos desligados.
Levantou o lençol branco. Encontrou um corpo frio. Empurrou. Socou com as duas
mãos. Queria arrancar o morto da cama. Não foi possível. Como se o corpo
estivesse amarrado. Fracassou. Embranqueceu [...]
Publicado originalmente no Passa Palavra
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