AS MENSAGENS PERDIDAS

 

Livro puxa livro, um traz outro, e assim se faz, se não um romance, pelo menos uma coluna [1].  Estava lendo sobre os últimos anos de Belchior [2]. Os autores citam a fuga de Tolstói, em 1910. O que leva um ancião de 82 anos a fugir de casa? Fiquei interessado. Fui ler Tolstói – a fuga do paraíso [3]. A arte de desaparecer é um tema que me atrai. Levou-me, por exemplo, a um escritor interessante como Enrique Vila-Matas, que tratou do tema no romance Doutor Pasavento [4] e nos livros de contos Suicídios exemplares [5] e Exploradores do abismo [6]. A arte de desaparecer compôs o pano de fundo das colunas que falaram de Belchior [7] e Robert Walser [8].

 

Mas conforme avançava pelas muitas páginas de Tolstói – a fuga do paraíso não era exatamente o tema em si que me chamava a atenção. O que me espantava era a capacidade do autor para reconstituir minuciosamente fatos ocorridos há mais de cem anos. Como reproduzir em detalhes acontecimentos do passado distante? Pável Bassinski opera o milagre da reconstituição a partir de cartas e diários de Tolstói, principalmente, mas não só. Utiliza, também, cartas e diários de familiares e amigos. Reconstrói fatos e personalidades de familiares, amigos e pessoas que conviveram com Tolstói. O que me levou a outro tema interessante, a luta da memória contra o esquecimento.  E daí retornei a um romance genial de Milan Kundera, O livro do riso e do esquecimento [9], que se passa na então Tchecoslováquia e é formado por sete partes, sendo duas intituladas As cartas perdidas.

 

Se Pável Bassinski está correto, foram desgastes familiares, especialmente com a esposa (Sófia Andrêievna), que levaram à fuga de Tolstói, aos 82 anos. Estavam em jogo os direitos autorais das obras do escritor e a posse dos diários dele. Mas por que pensei nas cartas perdidas? É que na parte final de Tolstói – a fuga do paraíso, Pável Bassinski reproduz uma carta de Sófia Andrêievna para o marido datada de outubro de 1895. Diz ela:

 

“Mas não posso deixar de lhe dizer (pela última vez, procurarei que seja a última) o que me faz sofrer tanto. Para que, em seus diários, cada vez que menciona meu nome, você se refere a mim com tanta raiva? Para que você quer que todos os nossos descendentes, nossos netos injuriem meu nome, como o de uma mulher leviana e maldosa, a esposa que lhe fez infeliz? Pois quanto mais isso aumentar sua fama como mártir, mais isso vai me prejudicar.

 

[...]

 

Quando nós dois não estivermos mais vivos, essa leviandade será interpretada de qualquer jeito por qualquer um, e eles jogarão lama em sua esposa...” [10]

 

Na primeira parte do Livro do riso e do esquecimento, intitulada As cartas perdidas, Mirek proclama: “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.” [11] Ele tinha, com sua a vida, a mesma relação que os artistas têm com suas obras. Mirek se reservava o direito de retrabalhar sua própria história, como os romancistas retrabalham os romances. Mas havia um problema. As cartas de amor que escrevera, quando jovem, para uma mulher simpatizante do regime estalinista e, pior, feia. Sim, ele havia cometido o erro imperdoável de escrever cartas apaixonadas para uma mulher feia, um “bucho”, na definição dele [12]. Mirek supostamente conhecia o segredo da vida (antes que sejam ligadas as sirenes das patrulhas ideológicas do bom-mocismo, atenção para as aspas, são palavras do Mirek e não do Cenek): “As mulheres não procuram o homem bonito. As mulheres procuram o homem que teve mulheres bonitas. Portanto, é um erro fatal ter uma amante feia.” [13] Paradoxalmente e contrariando sua máxima grandiloquente, a luta de Mirek é contra a memória e pelo esquecimento. Ele quer recuperar e destruir as cartas de amor que havia escrito para a mulher feia e apoiadora do regime. Ele sentia que o fim se aproximava, que não podia mais esperar, que precisava se livrar de parte do passado. É hilária a luta paradoxal de Mirek contra a memória e pelo esquecimento.

 

Na quarta parte do Livro do riso e do esquecimento, também intitulada As cartas perdidas, um casal foge da Tchecoslováquia após a invasão russa. Vão para uma viagem de férias e não voltam. Mas, para não serem notados, levam poucos pertences. Deixam um embrulho com diários e cartas para não chamar a atenção da polícia. Porque ninguém leva diários e cartas para uma viagem à praia. Sabendo que o apartamento em que morava seria confiscado após a fuga, Tamina deixa o embrulho na casa da sogra. Tempos depois ela fica viúva e a imagem do marido começa a desaparecer da memória dela. Ela tentava reconstruir a lembrança do marido morto a partir da foto carimbada do passaporte. Mas fracassava. As lembranças escapavam. Tamina queria recuperar diários e cartas porque “o edifício vacilante das lembranças caía como uma tenda mal levantada” [14]. Ao mesmo tempo, ela se apavorava com a ideia de ter a intimidade violada por estranhos. Tamina sabia que suas cartas e diários eram destinados apenas a ela própria. Se fossem lidos por terceiros o elo íntimo seria rompido. Ela tenta convencer algum turista francês a passar em Praga para buscar o embrulho, mas não podia explicar exatamente o porquê. A luta de Tamina contra o esquecimento passa por turistas desinteressados e uma sogra hostil.

 

Milan Kundera cria variações geniais sobre alguns temas, como as cartas perdidas e a memória. Mirek quer arrancar e rasgar uma página indesejada do passado. Tamina quer recuperar cartas e diários para reconstruir as páginas borradas do passado. Luta da memória pelo esquecimento. Luta da memória contra o esquecimento. Uma e outra produzindo o riso. Mas há um ponto que une Mirek, Tamina e até Sófia Andrêievna: o pior dos mundos é ter escritos íntimos lidos por terceiros. Os três conhecem os riscos que se corre quando palavras são retiradas do tempo e do contexto. Aqui saltamos das cartas perdidas para as mensagens perdidas.

 

Se ter escritos íntimos acessados por terceiros é um pesadelo; Sófia Andrêievna, Mirek e Tamina viveram nos tempos da delicadeza perdida. O que são a Rússia do final do século XIX e a Tchecoslováquia dos anos 1960 perto do tempo presente? Penso nas toneladas de mensagens trocadas, atualmente, por meio de redes sociais controladas por monopólios privados. Pior, no tempo presente se flerta – se é que se pode chamar isso de flerte – por meio de aplicativos controlados por monopólios privados. Sófia Andrêievna teve dificuldade com o marido escritor. Mirek teve dificuldade com uma mulher feia. Tamina teve dificuldade com turistas desinteressados e uma sogra hostil. Como será lidar com monopólios privados?

 

Outro tema explorado com genialidade por Milan Kundera no Livro do riso e do esquecimento é a litost. O romancista esclarece se tratar de uma palavra tcheca intraduzível. Os dicionários traduzem litost por arrependimento. Mas não é exatamente a mesma coisa. Kundera registra que a primeira sílaba se pronuncia de maneira longa e acentuada, como o lamento de um cão abandonado. Litost é um estado atormentador nascido do espetáculo da nossa miséria subitamente revelada para nós mesmos. Como quando fazemos coisas que jamais imaginaríamos que seríamos capazes de fazer. Exemplo: agredir uma pessoa por nos sentirmos diminuídos pelas qualidades e pelo talento dela. 

 

Tamina sabia que, na então Tchecoslováquia, a imortalidade só existia nos dossiês policiais. Fico pensando que, no século XXI, a imortalidade existirá, será controlada e comercializada por monopólios privados. Não poucos tentarão, sem sucesso, arrancar e destruir páginas do próprio passado. A imortalidade no século XXI será o espetáculo da nossa miséria súbita, constante e comercialmente revelada. Uma espécie de litost agravada. Imagino Mirek tentando apagar mensagens apaixonadas enviadas – pelo Tinder – para uma mulher feia. Além de fracassar, seria acusado de gaslighting e irresponsabilidade emocional. No mínimo.

 

Notas

[1] O trecho de Machado de Assis, que inclusive já apareceu na seção de máximas deste site é: “Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo ou uma revolução.

[2] Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti. Viver é melhor que sonhar – os últimos anos de Belchior. Rio de Janeiro: Sonora Editora, 2021.

[3] Pável Bassinski. Tolstói – a fuga do paraíso. São Paulo: LeYa, 2013.

[4] Enrique Vila-Matas. Doutor Pasavento. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

[5] Enrique Vila-Matas. Suicídios exemplares. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

[6] Enrique Vila-Matas. Exploradores do abismo. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

[7] A longa viagem de Belchior.

[8] A arte de desaparecer.

[9] Milan Kundera. O livro do riso e do esquecimento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[10] A carta de Sófia Andrêievna está reproduzida na página 369 do livro referenciado na nota 3.

[11] A máxima está na página 18 da edição referenciada na nota 9. 

[12] A palavra bucho está na página 21 da edição referenciada na nota 9.

[13] O trecho está na página 19 da edição referenciada na nota 9.

[14] O trecho está na página 105 da edição referenciada na nota 9.


Publicado originalmente no Passa Palavra

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